BEM-VINDOS

Obrigado pela sua chegada; não se esqueça que é de AMOR AGAPIANO* que essencialmento poeto, também erótico quando a propósito de algumas circunstâncias episódicas nas mais diversas proporções. Como estou avança(n)do no tempo, não se escandalize, porque o que é preciso erradicar do Mundo é o preconceito secular, topo onde está preponderantemente a regressão da Humanidade neste percurso da condição humana, nem sempre adequada ao futurecer* do Homem, albergado corporalmente neste Planeta, sem saber com precisão, na generalidade, onde está a sua/nossa Alma. [ Obs. os astericos* assinalam dois neologismos da nossa Língua ].

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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O Laxismo Diletante Contra O Rigor Literário

(ou a Arte suportada por dois ditos populares: "Quem te manda sapateiro, tocar Rabecão?" e "Tudo enfada, só a vaidade recreia") por Daniel Cristal

Muita vez me confronto com esta dúvida: se vale a pena pensar poesia, discorrer poesia, explicar poesia, contestar poesia. É uma situação em que, quem fala torna-se suspeito porque a pratica ; quem ouve - recebe com olhar vesgo e de soslaio, olha de lado, porque quer chegar à luz da ribalta, e ser reconhecido sem muito trabalho de permeio. Há aprendizes que pensam ter encarnado Rimbaud, esse génio meteórico, precoce, que apareceu (em Paris, onde vivia), e logo convenceu toda a elite artística, no final de sua adolescência... Um prodígio! E é curioso que foi tão aceite e acarinhado pelos jovens que o jubilaram, que logo desistiu, partiu, abalou para outros horizontes, e foi enriquecer no Oriente Médio, lá instituiu o seu harém, constituiu uma frota de camelos, e viveu como um nababo, um paxá, sem se importar mais com a poética.

A mim, parece-me que um dos cernes da questão está mesmo aqui: em que para se ser mestre, tem de se conhecer as regras, as normas, as técnicas, as teorias e o conhecimento, tudo isto junto e parcelado, e depois destas aquisições do aprendizado, preciso é exercitar muito para que se consiga ser apreciado, amado, e adquirir finalmente o mestrado.

Muitas vezes me vem à ideia ou me passa pela cabeça, ou se quiserem me põe a magicar esta imagem: não conhecendo as normas, técnicas teóricas e práticas da Arte musical, não tendo estudado música minimamente, o que vou eu fazer num teclado de um piano? Há quem consiga tocar flauta, gaita de beiços, viola ou violão, concertina ou harmónica, tão só de ouvido, numa pura imitação do conhecido e experimentado pela sensibilidade. Criar, isto é outra coisa. Não chegam lá os imitadores; podem ainda fazer uns trechos musicais que se assemelham ao conhecido, sujeito a alguma originalidade; mas ser Artista é toda uma outra coisa que não cabe em nenhum improviso! Vou ao piano, chego lá e ponho os dedos sobre as teclas. Toco e toco. Sai tudo errado, ninguém gosta, quero fazer crer aos outros que sou dotado, barafusto que tenho talento e sou génio, que sou prematuro, precoce, que sou superdotado... que sou revolucionário, sou rebelde, sou dissidente, sou uma força viva da natureza em estado virgem; grito que não preciso de normas e regras e estudo, que elas não servem para nada, e convenço-me, se não gostam do que ouvem, o defeito é de quem ouve, e não de quem tecla, porque meu receptor é atrasado mental, bota de elástico, velho convencido, invejoso, rabugento...

Mesmo conhecendo as regras, os que ascendem ao escalão de mestres, têm de ir mais longe; têm de optar por caminhos novos; por formas originais ou renovadas, senão a sua arte fica redundante, maçadora, estéril, puerilmente encantatória, irreconhecida pelos entendidos na matéria exercitada. A procura de novas formas, ritmos, sonoridades, imagens, a definição pela maturação dum estilo pessoal, pela definição rigorosa dum idiossincrasia peculiar, é a vida do mestre-criador. A obra-prima possui sempre uma expressão original e identificação peculiar. Precisa de ser incomparável. Basta um só traço para a distinguir e reconhecer de qualquer outro criativo. Uma luta árdua trava-se então para arredar o cliché ou a manifestação artística poluída ou gasta, até que de repente o criador se mostra seguro da sua mestria. E consequentemente um novo mundo artístico de desenha e desenvolve no seu imaginário, cada vez mais facilitado pela aprendizagem consciencializada a que não é alheia a retenção constante de novos contributos, extraídos de cíclicas renovações conceptuais de arquétipos metamorfoseados.

Picasso e Dali foram dois génios, dos melhores do seu tempo, porque eram perfeitos na pintura figurativa e impressionista; desenhavam classicamente como nenhum outro dos seus pares, qualquer objecto; retratavam-no na perfeição, e só quando se apropriaram integralmente de todas as regras, normas, técnicas, teorias, lançaram-se então (ainda muito jovens) na sua própria Arte particular, pessoalíssima, e foram aceites como paradigmas de uma época, caracterizando uma revolução de formas e conteúdos.

Em parte, agora evocando o segundo dito popular, transcrito em epígrafe, e já que foi editado pelo meu amigo Valdez (do Ateneu), Mário Quintana tem razão: "é melhor deixar poetar quem não sabe, do que deixá-lo frustrado a ruminar maus presságios e criar dores de inadaptação". Mas isto é um acto benemérito, solidário, de benquerença. Todavia, ele tem, como afinal tudo na vida, o reverso da medalha: também é um meio de criar ilusões a quem vai, no futuro, sofrer decepções, viver duramente frustrações, por não ser notado no trabalho que faz, nem amado! No entanto, há que dar chance aos que querem tentar e se vão esforçar por ir aprendendo. Com uma aprendizagem metódica e apurada, consentânea com o seu estatuto, vão-se aperfeiçoando para seu bem e prazer de nós todos, nós que precisamos da Arte para sobreviver num mundo enfadonho e triste, e decepcionante e ingrato, às vezes asqueroso e acanalhado. É ela que suaviza todas as amarguras da vida. Que não é fácil nem muitas vezes pródiga a existência, mas também é certo que nela podemos ser felizes, se soubermos enfrentar a adversidade e a agressividade munidos duma, mais ou menos forte, sapiência, colhida e acumulada ao longo dos anos de frustrações e sucessos.

Há outra ideia que me vem assaltando a mente frequentemente: quando começamos a ler uma poesia ou prosa, logo que lhe pegamos, notamos algo diferente (ou não); algo que nos agrada, nos seduz; basta ler os dois primeiros versos, as duas primeiras frases. Ficamos logo colados, atraídos por qualquer aroma de magia. Ora, é este primeiro contacto que define a poesia e a prosa excelentes. Não se julgue, porém, que escrever seduzindo é tão fácil como isso! É exactamente o contrário: demora horas e horas, semanas e semanas (às vezes meses); é um exercício de grande paciência, de suor vertido com algumas "lágrimas" de dor e de amor! É um constante refazer, retocar, nunca se considera perfeito. Lê-se, relê-se em voz alta, voz baixa, murmura-se, até que no fim podemos verificar e certificar que está tudo tão simples, fácil, entendível, cristalino, que parece ser a própria simplicidade natural, a mais cativante, e à qual facilmente todos aderem.

Técnicas, caros leitores, devemos aprendê-las todos os que querem ascender a mestres ou exercer uma actividade artística. Mas ela não chega, todavia, para se ser genial. O génio é também um dom; pertence a alguém dotado, que recorre a aprendizagens constantes e a exercícios longos e aturados (é um trabalho de forja, de lapidação, de espaço de estudo, compenetração e burilação). São exercícios de experiências e mais experiências, de cortes e recortes, colagens, e de abundante lixeira à qual lhe deita fogo de vez em quando. A Arte é uma escola de atributos e qualidades que recriam e recreiam, o Poeta ou o Artista pode, quando muito, querer dar a mão aos interessados na aprendizagem, por simpatia e generosidade. Coisa que até nem é obrigatória! Alguns mestres põem essa ideia liminarmente de lado, por ser uma postura que também contém defeitos muito negativos, insalubres, e com frequência efeitos muito perversos!

E pergunto-me ainda hoje: porque é que os/as "poetas" assim auto-intitulados, não escrevem prosa, e em vez de frases recortadas, paralíticas e trôpegas mal metrificadas, que não provaram a escanção, não editam textos em prosa? Leio textos que seriam belíssimos, se não quisessem aparentar o que não são. Às vezes até faço o inverso, como exercício lúdico: um texto poético transformo-o em texto dito prosa poética, e ambos ficam rigorosamente iguais no seu conteúdo, e tanto emocionam duma maneira como doutra. Será milagre da natureza? Quem estiver atento à transformação chegará à conclusão (estou convencido sem vaidade no que digo), que é um exercício jocoso e sub-reptício para ditar algumas lições, chamadas, vulgar e modestamente, dicas. René Char foi mestre no poema em prosa. Herdou-o do genial Charles Baudelaire. Vale a pena ler e estudar ambos. Os seus minitextos são de facto exíguos, mas significam, nomeiam e arrebatam o mundo todo, os fonemas e os signos respondem-se uns aos outros permanentemente, o ritmo é fabuloso…

Assim é entre outras composições, o soneto, as redondilhas, as trovas, cada texto lido ou cantado pode ser uma obra-prima.

O soneto, é a jóia da Literatura, a meu ver. Uma obra perfeitamente acabada, capaz de ser dita e cantada com ritmo perfeito, cadência impecável, com as sonoridades adequadas à expressão do sentimento e da emoção nas línguas românicas, preferencialmente nestas, mas também nas anglo-saxónicas… Se o trecho significante for, de igual modo, bem significativo, se a demonstração implicar e evidenciar um bom domínio, no respeito pelas suas intrínsecas regras estruturais de metrificação e rimação, e for complementado ainda pelas extrínsecas forças vocabulares, as que compulsam as ideias num recurso a uma variada gama de figuras de estilo do domínio da semiótica, então estamos pela certa em presença de algo valioso. Algo que sai da vulgaridade e pode causar e produzir o arrebatamento emotivo.

Inspiração não chega, diz o meu amigo escultor José Rodrigues, um dos nossos melhores escultores portugueses hodiernos. É só um por cento do trabalho, quiçá o mais importante, 
sendo certamente a marca do génio. Porém a Arte exige, outrossim, muita transpiração! É também e especialmente a parte restante (99%) que completa a obra de Arte - o suor e o trabalho não rogados. Ele não diz, como eu digo, o meu amigo escultor, mas quer dizer, sem margem de dúvida, a mesma coisa. A ordem das palavras (ele diz assim " uma obra de Arte nasce e desenvolve-se com 1% de inspiração e 99% de transpiração") e o contexto é que são diferentes. Ele fala no seu ateliê, eu falo em campo aberto. Ele fala para aprendizes que querem aprender. Eu falo para todos os que me lêem e desconheço o interesse que eles dão a estas matérias literárias...

Quantos têm pensado nisto? Os do ofício, ainda que amador, certamente, estão comigo!

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Fernando Pessoa - Daniel Cristal


O Poeta finge a Poesia numa obra,
e finge tanto que imagina ser
o próprio fingimento, pois desdobra
o puro sentimento em parecer !

E, o que parece, é, como a mulher
que, casada com César, não se freia,
e na orgia báquica não finge o que é:
Pompeia condenada por Boa Deia.

De facto ao Poeta nada é proibido:
a permissão da emoção no som
da imaginação, fá-lo querido...

Poeta condenado ao bom tom,
endeusado na obra com sentido,
é digno do ofício com seu dom !

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Perdurar na Divindade - Daniel Cristal

 
É na fusão do amor entre dois seres humanos
Que a divindade é atingida e perdura
Enquanto for intenso o carinho e a ternura
Durante os longos dias vividos sempre ufanos
 
Fruídos nas Arte e Amor  sem pressa nem urgência
Vividos um a um na fruição do corpo
E no usufruto da alma - belo jardim ou horto
Que outrora foi selvagem hoje cheio de ciência
 
Uma ciência que nos leva à origem
Entre o macho e a fêmea - a cópula etérea
Fundindo a psique com o sema da matéria
 
Tanto basta fundir o todo hoje virgem
Nem sempre sendo o original o que é primeiro
Pois pode ser mais verdadeiro o derradeiro.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Quando morre um Poeta - Daniel Cristal


Quando morre um poeta, o planeta
sofre o abalo da lava encarnada; 
uma voz é calada e o alfabeto 
fica sem uma letra precisada.

Quando morre um poeta, não é só
o arcano que morre, é também
uma estrela que cai ficando pó,
a chorar como um filho por sua mãe.

Quando um poeta morre, há uma gota
que vem do mar, salgada com o sal
de sangue muito rubro, a linha rota

da colcha que foi bela sem igual.
Quando morre um poeta, o meu olhar
afunda-se na água desse mar.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Poeisis e Poesia - Daniel Cristal

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Poïesis é o étimo grego que foi adoptado em latim pelo termo Poeisis e nas línguas românicas pela designação de Poesia. De acordo com a cultura grega, transformada através das suas conquistas na Ásia e Norte de África nesse período pujante do Império helénico, em Civilização; Na origem - «ab initio» - a Poesia não era substantivo mas um verbo. Não era um produto, um acto finalizado por longa descrição ou narração dum fenómeno ou vários numa obra fosse ela pequena ou grande, tais como um texto, uma canção, uma estória. No seu início era a própria acção da criação, momentânea, como se fosse um clipe reduzido à mínima expressão. O poeta poetava ao exercer um acto criativo explosivo, subitamente detonado. Da acção nasceria a obra, à qual nós chamamos hoje inspiração do êxtase captado em poucos segundos, que preencheria a infinitude do deslumbramento.
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Entre os dois significantes há uma enorme diferença. A essência no curto desenvolvimento da acção na forma explosiva, o próprio limiar da acção decorrente e a sua memória captada são o que restavam deste mínimo decurso. Derivando do exposto, esta acção poderia muito bem resultar num signo silogístico com a designação de poetar um só verso, diferente daquele que hoje ensaiamos na Ciberliteratura interactiva recente. Nessa acção não há necessidade de utilizar nenhuma técnica artística, estética, retoque pessoal ou original. Um verso preenche todo um fenómeno minimalista observável e sentido. Esta deflagração concilia a matéria com o tempo minimalista e o homem com o mundo virginal, sendo sempre a metamorfose dum ante que se torna depois durante uns instantes. E reforçando esta ideia pelo léxico posterior obtido, o étimo acabou de forma analógica por ser aplicado na terminologia da Biologia na forma de sufixo; assim é o caso da hematopoese e eritropoiese, que significam: o primeiro, a formação enigmática de células sanguíneas, e o segundo a formação misteriosa de hemáceas. Estas são acções sanguíneas momentâneas, que se operam no sangue para a sua renovação, produzidas em fracções do segundo.
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Neste caso a heteronímia aplicar-se-ia como fosse uma autoria indefenida, não o autor da obra, mas outro, associada às Forças Ocultas da Natureza do Universo, em especial deste planeta, ou numa só expressão: à divindade deificada, que regula a obra que se criou com ela, e com ela evolui ao se ir fazendo com um intuito por ela programado. Quem assinaria a obra não deveria ser o vulgarmente considerado autor, mas um só D, de Divindade ou de Deus, se forem crentes, porque se não forem o D também serve muito bem ao enigma desta máquina energética, que é o Mundo, e que também os ateus nunca conseguirão desvendar.
Platão refere-se num simpósio socrático a Diotima, e descreve a acção Poeisis como um esforço para contrariar a fatal continuação mortal do homem. Todas as definições do termo garantem a tentativa da conquista do belo, como uma espécie de fazedora/criadora, ou fazente/criante.
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Na retrocitada ordem de ideias e seguindo Platão diremos então que na origem do decurso da acção há um movimento que contém três aspectos diferenciadores na signigicação fornecidos nestes exemplos: 1) Poïesis pode ser a cópula destinada à procriação como uma condição para a permanência genética animal projectada ao infinito, 2) pode ser uma acção de heroicidade conducente à glória e fama, as quais são também factores de imortalidade da pessoa, 3) Poïesis como condição anímica inserida no culto da virtude e do conhecimento.
Na verdade, entre outros, Martin Heidegger faz referência destacada a este movimento explosivo e define-o como condutor/levante, ou seja numa tradução mais portuguesa uma acção "trazente/metamorfoseante" com a amplidão máxima possível. E caracterizou analogicamente Poïesis com exemplos: a florescência a florir, a formação da borboleta a brotar do casulo, a cachoeira quando a neve de repente está a derreter. As três analogias dos exemplos de Heidegger, baseados no conceito etimológico, são acções liminares duma imprevista ocasião espontânea e momentânea, bem extasiante. É uma ocasião de deslumbramento igual a algo que se move duma posição fixa, uma acção invulgar e pontual duma cena que deixa de repente de ser o que era ou foi anteriormente, e é em conclusão a visão duma pequena parte holística do mundo que repentinamente se transforma noutra coisa inteiramente diferente.
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Afinal e reflectindo sobre o que disse retrospectivamente, o poeta é apenas um observador, e quando este esteta escreve só o que observa, o mesmo seria dizer que ele é o tradutor de toda a força da Terra comungada com o Universo a manifestar-se através dele; nesse estado ele não é o Autor, mas o intérprete duma súbita manifestação metamórfica. A irrupção dum vulcão poderá ser uma acção poética, assim como o orgasmo que nos aproxima da divindade.
No mesmo sentido o canto do rouxinol é uma acção da poeisis pura espontânea, levando em conta que expressa a beleza muitas vezes esfusiante da natureza. É, direi eu, o diamante bruto que agrada e incita ao deslumbre. No entanto, a poesia deixou de ser a acção helenística com o decurso do tempo para ser um produto pleno de artifícios que só o domínio de técnicas e das estéticas pode fazer deslumbrar «ad extremum». O diamante bruto pode tornar-se o mais belo diamante lapidado (fiz-me entender?). A música e a poesia nascem da poïesis, mas não se confinam à pontualidade de algumas sucessões curtas no tempo; elas desenvolvem-se por toda a obra de Arte: a Poesia e o Romanesco, a Pintura e a Escultura. Porém, o deslumbre vai aparecendo no máximo esplendor à medida que se desenvolve, por intermédio de aperfeiçoamento com recurso a técnicas apuradas e ajustadas (as mais variadas, as mais adequadas, as mais desenvolvidas, sendo preciso também seleccioná-las. Eis que é assim que é gerada a criação (o nascimento) e se expande a obra depois da explosão inicial. Quando Heidegger diz que poïesis é uma acção liminar, o primeiro instante da queda-d'água em cataduta a brotar de degelo, ou o primeiro instante em que borboleta sai do casulo, ele refere-se com certeza à Poeisis do género etimológico, instante de transformação.
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Ora, a poesia como nós a entendemos hoje é a obra terminada depois de depurada, um trabalho em laboratório criativo. Poesia nas línguas românicas, anglo-saxónicas, ou outras quaisquer, é obra ou obras donde nascem permanentemente borboletas e cataratas, virtudes e belezas, vulcões e orgasmos, e todos eles passam pela nossa imaginação na leitura ou audição e por todo o sistema sensitivo das ramificações neurológicas, deslumbra pela variedade de sensações despertas logo despoletadas, dedilhados que são os signos encadeados nas mais diversas formas e nos mais díspares significantes plurissignificativos.
Como estamos a discorrer numa área em que as analogias abundam, as metáforas inter-agem na criação de alegorias, poderíamos afirmar que o amor à primeira vista também aqui tem lugar, a atracção irresistível, e ao falar assim estamos a aprofundar o que é Poeisis; todavia, o amor que a partir daí se desenvolve, a proximação subsequente e o conhecimento mútuo, prazer e paixões, atravessados por compaixão quando o amor vacila, todas estas acções fazem parte de uma Poesia trabalhada esteticamente nos nossos dias. Edgar Allan Poe revelou que escrevia muitas vezes em estado de vigília. Ora bem, aqui temos um processo também primoroso (pelo menos, no seu caso, foi) de exprimir o que é deslumbrante no meio-sonho com a capacidade para deslumbrar quem recebe a mensagem. Vários poetas e escritores dizem que anotam as suas impressões e sensações em papelinhos e depois os trabalham nas suas obras. o processo citado ajusta-se muito bem ao conceito de Poïesis. Também este é um processo magnífico de captação de acções fulgurantes que poderão servir a poesia e a prosa. No meu caso pessoal, muitas das obras nascem nos espaços em branco do jornal que compro e leio diariamente. Há dias em que os perco, mas não me aflijo porque a ideia renascerá sempre numa nova dimensão, o que às vezes é um benefício assaz vantajoso.
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Neste momento surge-me uma dúvida e titubeio para a sua revelação. Quando a língua inglesa usa o verbo para substantivar um tempo relativamente longo, por exemplo o signo verbal Spring que designa primavera, e Fall para Outono (as duas estações que fazem mudar toda a face dos panoramas terrestres, extremamente sedutoras), tudo me leva a pensar que estamos em presença duma herança pan-helénica, com a diferença de que essa acção liminar (nascer/cair) se transforma no tempo na Poesia que hoje decorre por três meses, mais ou menos, uma sucessão de nascimentos e ocasos anuais que maravilham o mundo onde somos contemplados pela vida que nos foi agraciada sem custo nem pagamento cobrado ou a cobrar, seja ela curta ou longa. Tudo o que somos, a nós se deve, e mais vale que seja uma vida longa que breve, se for com saúde.
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Contudo, o volte-face de todo o exposto desde o começo, está nesta revelação que certamente já passou pelo cérebro de boa parte dos meus destinatários seguidores: é que nem a Poeisis grega foi cumprida a preceito no seu próprio País, desobedecendo ao seu étimo. E a confirmação está nas obras de Orfeu Lino, Alceu, Safo, Anaceonte, Píndaro, Esopo, a poesia épica - Ilíada e a Odisseia. A sucessão dos momentos de poeisis é a mesma que hoje exercitamos e executamos nas obras que vamos lendo e humildemente escrevemos numa dádiva escassamente retribuída em dinheiro, bens ou géneros; elas são mormente contenpladas com paga-nula, todavia, apesar desta fatal vicissitude, humanamente indigna, elas são mais conhecidas e reconhecidas (quando boas) do que esperávamos ou esperamos.
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quarta-feira, 30 de junho de 2010

PREFÁCIO de Victor Jerónimo - (para e-book de Armando Figueiredo)


Conheci este grande senhor em uma esquina da net, quando eu ainda deambulava perdido pelas capelinhas da poesia.
Vi-o de longe e analisei-lhe o perfil e logo de seguida embrenhei-me nas sua letras. Habituado a ler os grandes mestres da literatura por gosto e também por força da profissão logo ali o seu escrever chamou-me a atenção. Fui então a essa ferramenta fantástica que se chama "Google" e escrevi, "Armando Figueiredo".
A partir daí comecei a minha pesquisa e fui-me inteirando que este grande poeta, escritor, cronista, critico, professor e muito mais, escrevia sublimemente e ainda mais tocava-me a alma.
Soube que ele tinha uma comunidade "O Fórum dos Mestres Aprendizes" e então ganhei a coragem necessária para escrever a este grande senhor, pedindo-lhe o meu ingresso nesta sua comunidade.
Fiquei maravilhado com a qualidade poética dos autores inscritos nesta comunidade. Quando no Natal de 2003 o Armando Figueiredo publicou um poema com o titulo "A Arvore de Natal" li e reli o poema e atrevi-me a responder em dueto a este grande Mestre da poesia. Pensava eu humildemente que iria ser criticado, mas não, o elogio que recebi guardo-o até hoje com muito carinho e AMOR.
O tempo passou, muita água correu debaixo das pontes e muita chuva engrossou os rios, mas esta amizade e a inspiração que este Homem-Poeta me proporciona tem-me levado a continuar na senda do melhoramento.
Quando recebi o convite do Armando Figueiredo para prefaciar este e-book fiquei estupefacto. Como poderia prefaciar um grande Mestre, eu, um humilde homem que de vez em quando escreve algumas letras? Mas aceitei o desafio e esta tarefa soberba na esperança de não ser muito criticado.
Armando Figueiredo, Daniel Cristal, Eugenio de S. Vicente, ortónimo e heterónimos, cada um com seu estilo mas que nos conduzem a grandes momentos literários.
"Se alguém deixar a mão aberta ao vento,
todo o movimento se lhe agarra
a bordar qualquer tela sem amarra"
in O Liberal (Daniel Cristal)
O Daniel Cristal é o heterónimo mais conhecido e que muitas vezes nos faz esquecer o seu ortónimo, levando muitos leitores a confundirem o homem dividindo-o em dois autores distintos. Quando converso sobre o Armando Figueiredo alguns leitores são peremptórios em afirmarem que não o conhecem mas quando falo no Daniel Cristal dizem conhecer muito bem este poeta e os que conhecem os dois nomes mostram admiração e até duvida de ser o mesmo poeta.
Recordo-me que foi com Daniel Cristal que li pela primeira vez a palavra futurecer palavra esta que um dia irá figurar nos dicionários. Futurecer deu que falar quer em criticas quer em admiração e deu origem a nove poemas escritos pelo Daniel Cristal e um grande numero de respostas em duetos ao autor em torno deste futurecer, mostrando assim o quão versátil é a língua portuguesa e como uma palavra pode entrar na gíria do povo.
"Hoje é o dia da Estrela nunca finda,
Nascida da Alegria duma festa;
Dia de Futurecer a nova Gesta"
in Dia do Futurecer (Daniel Cristal)
Não sei se a memória me falha mas creio ter conhecido o Eugenio de São Vicente, primeiro que o Armando Figueiredo e isto nos finais de 2002 ou princípios de 2003 em um poema, creio que tinha o titulo Tempo de Guerra.
Só muito mais tarde vim a descobrir que o Eugenio e o Armando eram a mesma pessoa. Recordo igualmente ter lido algo sobre o Eugenio e Olivença.
E creio que foi com o Eugenio de São Vicente que nasceu o futurecer
"«Dizemos amanhecer quando a aurora acontece...
Nunca dissemos a palavra futurecer!
Amanhecer é o signo que nunca envelhece,
Futurecer é o novo, que nos fará crescer!»
Eugénio de S. Vicente"
in É Possível Futurecer
No Armando Figueiredo, cronista, contista, critico encontramos ao longo de toda a sua vida grandes temas que ainda hoje são actuais e onde nos deparamos com verdadeiras obras de arte em letras esculpidas por este grande Mestre.
O e-book que agora se apresenta com quarenta poemas de amor, vem mostrar uma faceta há muito conhecida neste grande poeta mas em que só poucos acreditam. O amor fraternal, o amor de amigo, o amor de amante, quantos e variados temas para definir e mostrar-nos através da poesia o amor, amor prolongamento da amizade, amor sublime só sentido por alguns.
"O Amor é mais forte que a Amizade!
Feliz daquele Amigo que mais ama...
Dúvidas eu não tenho desta verdade
Por ter AmorAmigo como chama."
in AmigaAmor (Daniel Cristal)

Somos todos etnónimos vivendo em algum canto do mundo mas onde a internet nos chega debitando os seus bites de letras.
O leitor que tiver a felicidade de ler este e-book vai estar perante um dos Grandes Mestres do nosso tempo.
Ao Mestre, fica aqui o meu obrigado com AMOR por ter-me oferecido a rara felicidade de prefaciar este e-book.
Bem-haja Mestre Armando Figueiredo


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sexta-feira, 25 de junho de 2010

A JOSÉ SARAMAGO (singela homenagem) - Daniel Cristal


A eternidade está em todo o mundo
servo ou livre ou preso do teu corpo
esta vida vivida ao segundo
é capaz de arribar ao melhor porto.

Se não acreditaste, há paciência,
mas tens à tua espera um coro de anjos.
Não crer na fé e acreditar na ciência
só precisa de alguns poucos arranjos...

Em vez de viver o ano, vive a sorte
de tornar o segundo sempre eterno,
expandindo-o até ao fim - morre de amor...

Porque só isso importa em qualquer morte
ter sempre a porta aberta ao amor certo
- o amor vivido perto do esplendor.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Quadra de Manuel Mentarfa (poeta vareiro)


FURADOURO - OVAR
-
Terra da minha afeição
Do meu brincar de menino,
Vives no meu coração
A rir do meu próprio destino.
-
Quadra de Manuel Mentarfa
(poeta vareiro)
-
Glosada por Daniel Cristal
-
Não é só do Furadouro
mas também da sua ria
que a terra d' alegria
desenha com cor de ouro
signo emerso imorredouro...
Nunca traz a frustração
e conforta o coração,
esta praia conhecida:
Furadouro, cheia de vida
praia da minha afeição.
-
Mas além do Furadouro
gosto imenso dessa ria,
nosso espanto e alegria
que já acolheu o louro,
também o vencido mouro;
circundada pelos montes,
encostas com muitas fontes,
tem fértil planície aberta,
a eira ideal e certa
do meu brincar de menino.
-
O seu Museu e a Igreja
são seus belos monumentos,
mas há outros acrescentos,
esculturas de quem seja
símbolo do que almeja...
A faina é a emoção
amor de varina e pão,
ensejo de arte nativa
- o Entrudo que cativa...
Vives no meu coração.
-
O rio Cáster serpenteia
na nossa cidade alegre
e com a ria se agrega;
Tanto banha quão bronzeia
quem se diverte n' areia...
Em cima dum gordo suíno
No Carnaval faço o pino!
E ainda qu' aí troque o passo,
posso até ser um palhaço
A rir do próprio destino!

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Falar De, Por Metáforas - Daniel Cristal


O espaço do Poeta é este quem o faz. O sopro, conjunto de muitos ânimos, pode trazer-lhe o seu próprio lugar, ou deixá-lo morrer na secura da sua falta de pujança. O dom, o ser dotado, aquilo a que chamam talento não é produto do querer ser, é algo que provém do imo, do âmago vibrante e ressonante; é a fonte que brota espontânea, explosiva com reservas subterrâneas, transborda sem vontade aparente; isso é a essência da brutalidade, mas é, na sequência, o objecto do trabalho do artífice. Do mineral bruto pode fazer a mais formosa pedra preciosa. Todavia, terá de a trabalhar, burilar. Algumas vezes precisa até de a marchetar.

De vez em quando chega-me via Internet e pelos CTT, não sei bem a razão, nem sei muito bem com que finalidade, poesia do mais variado teor: erudita, popular, semi-erudita, cordel, epopeica, kitsch; poesia, sim, variada, e, ou remetem-na directamente, suponho eu, para que dela tome conhecimento (no início tentaram desafiar-me para que eu opinasse - e ao criticar (a menos conseguida) suportei duras reacções de ressentimento agressivo), ou, em alternativa, para que pudesse e devesse abraçá-la empaticamente. Foi e é muito natural, expedientes deste género, no enquadramento tentado, ainda que, por enquanto, não seja totalmente nítida para mim a intenção suportada. Algum merecimento me atribuem neste meio virtual, e também editorial livreiro, ao ter de ser recompensado com estas investidas de reconhecimento ansiado; diremos algum carisma, que, se calhar, até está empolado, e, pessoalmente não descortino com nitidez o propósito, tudo isto apreciado pela modéstia genética e própria também do meu percurso formativo, no sítio onde não está alheio o estudo da filosofia oriental, certamente a mais conhecida no Ocidente pela Poesia de grandes estetas dessa outra metade do planeta; a modéstia e a simplicidade foram apreendidas nessa outra parte do mundo, que tem sido pouco divulgado deste lado, até ao momento; porém, esta curiosidade minha já advém da adolescência, e tenho-a retomado sempre que posso e muitas vezes a propósito de fenómenos que se dão nesta civilização, onde me situo, e me fazem conceber, tão objectivamente quanto possível, o Homem no seu tempo e no seu lugar, repartido por várias culturas e muitas sub-culturas. 

Apercebo-me até que na remessa de Poesia que me chega aos olhos, outra parte até impressa, há Poetas que admiro. No caso da ciber-escrita, apercebo-me de Poetas que, com desgosto meu, não estão editados nem expostos nas Livrarias mais prestigiadas, levando em conta que verdadeiramente lá deveriam ter o seu lugar. Os Editores livreiros não cumprem bem a função que lhes poderia e deveria estar destinada: editar a melhor Poesia e Prosa, e ela é bastante que se lê nos nossos dias, não obstante, ela estar bem patenteada em muitos Sites e E.Books deste acontecimento revolucionário do presente: o fenómeno informático ao serviço da Cultura e do Entretenimento; limitam-se os ditos divulgadores da imprensa escrita a re-editar as obras já consagradas, e alguns indómitos aventureiros avançam pela edição de um novato, às vezes pela mão de amizades feitas nos salões actuais de convívio cultural. Quem a eles não vai, como é o caso de muitos dos que admiro, está automaticamente afastado do público leitor de livros em papel. Há literatos que nem se importam muito deste estado editorial repetitivo e extremamente limitado... pois, como não vivem da escrita, podem muito bem fornecê-la gratuitamente, sem pedir nada em troca, por 

generosidade absoluta; contudo, no mínimo, é-lhes devido o reconhecimento, que normalmente é dado, com excepção de alguns casos: por exemplo, quando entram por azar em algum grupo atípico onde são cultivados 

com ar de patética soberba, o ressaibo e a aleivosia; pois, também os há bem pronunciados na forma do aprendiz com má-formação; mas esses grupos são logo evitados pelo literato mais digno e consciente do seu valor. Efectivamente, quando os melhores (e friso os melhores) estetas da Net me dirigiram o aplauso, nesse gesto simples e simpático verifiquei que não estava só, nem, tão pouco, menos acompanhado, e foi também devido a esta empatia gerada que deixei de titubear na procura de suportes de aceitação e acompanhamento. Estava por natureza aceite na certeza que havia espaço para admiração mútua, sem mais necessidade de sedução ou enleio, uma procura de espaço onde o estro embatesse ao desvendá-lo contra muralhas de má-formação, vigente ainda na cibervirtualidade, e que, suponho, jamais acabará. Faz parte da pior natureza humana humilhar e menosprezar outro-alguém, sempre que se pode, e ele deixa, essa natureza tal como a conhecemos desde o início da Humanidade, e que evolui com uma lentidão arrepiante.

Ainda muito recentemente fui alvo de ressentimento por não criticar pela positiva a poesia dum poeta que divulga como ninguém em listas de milhares de endereços, o que de mim recebe. Como sabido e público, deixei de comentar a poesia dos meus pares. Apenas digo que gosto quando gosto. Comentá-la seria ocupar eu o lugar que não é meu: e é o do crítico. Quando discorro poesia como arte suprema, apenas o faço para situar a que produzo, e não a que os outros operam. Ao ler António Ramos Rosa, também leio Melo e Castro, seu crítico. E entendo um e outro. Entendo o poeta que cria o seu mundo alegórico na arte que conseguiu apurar pela sua individualidade, e entendo o crítico que devaneia, com bons meios de exegese apreendidos, por dentro, fazendo ressaltar o que ela tem de melhor na expressão patenteada. Normalmente norteia-se pelas linhas de força que irrompem do texto elaborado. Nada é mais natural. A empatia, no entanto, criada pela poesia, é outra coisa; é um efeito que está intrínseco, é endógeno e exógeno, cria forças psíquicas, na codificação e descodificação, na feitura e apuramento, na apreensão, e capta, prende, aprisiona, ou, em alternativa, quase oposta, indefere, ou deixa lassa a corda que prolonga o cordão umbilical duma mãe estética aos filhos (aficionados) gerados numa corrente de ampla generalização do que é manifestado pelo saber, pela estesia, pelo sentimento, pela emoção.

E este estado de coisas, leva-me a falar nesta divagação, com que me divirto (seriamente), no discurso presente, a falar de metáforas.

Ocupar um espaço num lugar tão ocupado, é difícil e complicado! Nada mais nos é exigido e exigível do que ocupar a parte minúscula que nos cabe, se for caso disso. Porque se não for, o espaço vai-se abrindo, pé ante pé. Aos poucos, e muito naturalmente. A flor, a planta, a árvore, que singram, e ocupam o seu lugar, ocupam-no pela sua robustez, por todas as características que lhe são inerentes e as individualizam no momento da sua génese. É a origem do ser individualizado e libertado que virá a ocupar no seu desenvolvimento, a sua dimensão. Mas não depende unicamente das suas qualidades; depende, outrossim, simultaneamente, da qualidade dos outros.

O espaço do Poeta é este quem o faz. O sopro, conjunto de muitos ânimos, pode trazer-lhe o seu próprio lugar, ou deixá-lo morrer na secura da sua falta de pujança. O dom, o ser dotado, aquilo a que chamam talento não é produto do querer ser, é algo que provém do imo, do âmago vibrante e ressonante; é a fonte que brota espontânea, explosiva com reservas subterrâneas, transborda sem vontade aparente; isso é a essência da brutalidade, mas é, na sequência, o objecto do trabalho do artífice. Do mineral bruto pode fazer a mais formosa pedra preciosa. Todavia, terá de a trabalhar, burilar. Algumas vezes precisa até de a marchetar. E de sequência em sequência evidenciar-se-á o modo, a maneira, o jeito artístico de transformar matérias e sentidos pelo aperfeiçoamento. Que jeito lhe dará? Na imitação de todos os processos anteriores, levados a níveis evolutivos? Claro, assim dito para os artífices. Contudo, interpondo uma diferenciação, se for artista. Mas, sendo o esteta apenas um artífice, e este pode não se deixar ficar por ser apenas isso, é no estado de suplantação e refinamento que se gera o artista-esteta; nasce a obra de Arte ao individualizar a mais profunda subjectividade e o que nela é incomparável. A mão, o pensamento, a sensibilidade, a potência do saber acumulado, determinam o lugar ocupado ou a ocupar. E este abre-se pela naturalidade, ou seja, pela natureza da sua individualidade vincada no deslumbre.

Desde o simples artesão que sabe muito bem ocupar o seu espaço, e tem-no certamente garantido numa sociedade em que a cultura é o que é, não me alongo mais para não deixar aberturas por onde haja razão para ficar sujeita à depreciação; este estado conjuntural hodierno que vai perdurar por mais uns séculos, se, diga-se em abono da verdade, o planeta aguentar todas as barbaridades que lhe fazem ao vandalizá-lo e depauperá-lo como tem acontecido ultimamente, até ao estado do verdadeiro artista que metamorfoseia matéria e espírito, havemos de nos entreter com toda a espécie de Arte, dada em avanços e recuos, formais e substantivos; essa é a riqueza da diversidade, tal como a vemos hoje. As vias são múltiplas, o espaço abrangente. Quem cativa o artista? Quem adere à sua arte? As respostas são fáceis de obter; e estas traduzirão em primeira e última instâncias, o nível cultural de cada reacção manifestada. E entre os dois pólos divergentes numa distanciação que nunca é bi-polar, quem consegue o verdadeiro estado de empatia, consegue também servir de medianeiro na transformação da existência objectivada na melhoria da condição do Homem neste planeta; por ser pobre, e atávico em preconceitos e arquétipos milenares, quer enriquecer o estereotipo precedente numa evolução lentíssima, à custa da pobreza que nunca deveria ter existido.

Não é a primeira vez que o digo: a Arte vive da alegoria, depois dos dadaístas e do simbolismo nesta modernidade, e agora mais do que nunca. Porém, ela já provém da Idade Média, e é patente nas parábolas da Bíblia, e anteriormente, no tempo faraónico (ressaltada na esfinge e outros ícones conhecidos). A alegoria que tem o poder de fazer compreender e nessa compreensão ser apreendida nos planos da inconsciência, da subconsciência e da consciência, funciona melhor do que o texto denotativo e linear.

Thomas Moore (1774-1854), o mais célebre revolucionário renascentista, assim entendeu a criação da sua mensagem surpreendente, admirável e apologética. As parábolas de Jesus Cristo, o melhor comunicador do seu tempo, não são alheias a esta percepção, frisada e comentada pelo seu discípulo Mateus, 13-13. Aliás, na poesia oriental (desde a antiguidade), ela é utilizada pelos melhores estetas (ver Rabindranath Tagore), ou, na actualidade, Kahlil Gibran; a parábola, para quem a entende amplamente, é idêntica à alegoria, mas, na sua construção, não se socorre do mesmo artifício; enquanto aquela expõe um mundo paralelo com sentidos muito idênticos ao real, esta vive da ficção paralela e não sai desse mundo fictício. Nos dois horizontes imagísticos a simulação é real, e a realidade cria uma outra apresentada viável e possível; na sua apreensão fica aberta a possibilidade dos simulacros concretizarem-se mediante a alteração do arquétipo conservadoramente consciencializado, sendo o horizonte novo motivador dum novo arquétipo que se desenvolve no trajecto que vai da inconsciência à consciência, depois de ter vencido o estado subconsciente, e tornando-se perceptível na irrupção duma nova acção comportamental atípica, princípios e valores novos que podem irromper quando menos se espera; a nova acção, regida pelo novo arquétipo, é depois imitada nas relações inter-pessoais. E finalmente generaliza-se num círculo de mestres, expande-se pelas comunidades pela nova consciência, abrangendo de sequência em consequência uma (i)limitada universalidade.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Um 2010 Acusador - Armando Figueiredo


Nestes tempos de descalabro financeiro que acarreta o desmoronamento da Economia global, o medo apodera-se da sociedade ocidental e esquecem-se reflexões, deduções, desenvolvimentos psíquicos e sociais, em que desde há mais de duas décadas tínhamos vindo teoricamente a acreditar como probabilidades consistentes. Pelos vistos, o homem não abarca nem grande nem consistente memória; esta, ao contrário, é no tempo actual, pior do que há meio século atrás. Não dura mesmo mais do uma tempo muito curto.
 
Acreditámos que a revolução tecnológica viria trazer a este mundo um progresso espiritual e material à sociedade ocidental nunca dantes conseguido. A revolução industrial com os seus avanços experimentados à custa de reivindicações das classes trabalhadoras,  apoiadas pelos ideólogos, sindicalistas e políticos, foi perspectivando uma sociedade mais próspera e justa. Mas essa revolução tecnológica prometia outros avanços muito mais alargados, e não só qualitativos, como também quantitativos. A robotização até propiciava a que os trabalhadores trabalhassen em suas próprias casas e aí colaborassem para melhorar a sua vida pessoal e social, ou seja para melhorarem em suma a sociedade onde estamos todos integrados, divididos em nações ou comunidades mais ou menos vastas. Claro que para atingir tal estado, as organizações políticas teriam de saber repartir o que face a essa tecnologia de ponta houvesse necessidade de repartir: isto é, a política deveria saber calcular a dimensão dos impostos de modo a que cada cidadão pudesse receber uma retribuição susceptível de assegurar as necessidades básicas, e algumas outras exigidas pela existência de uma vida que excluísse o medo do futuro.
 
Esperava-se isso, mas nada disto aconteceu. Aconteceu, ao contrário a desenfreada caça ao lucro que só aproveitou aos detentores dos meios de produção. Estes sugavam e sugam todo o lucro que é gerado, dissimula perdas onde há ganhos, usam da astúcia e da esperteza enganosa para adquirirem bens para enriquecimento pessoal desmedido e incontrolado.
 
Os governos acreditaram na inevitabilidade da ganância e a ela se aliaram para que pudessem usufruir da troca de favores entre poderosos, e A FINANÇA foi assim implacavelmente dominando tudo e todos, na certeza de que as elites plutocráticas constituídas, fossem um mundo à parte toleradas pela maioria dos pensadores medianos do nosso tempo.
 
Todo esse mundo acabou. Ele está, no máximo tolerado, próximo do seu estertor. Os poderosos remeteram-se ao seu tradicional isolamento e mutismo manhoso, e procuram que toda a sociedade se habitue ao crónico estado de abandono pela luta de causas humanitárias e edificadoras dum mundo novo, e segue de derrota em derrota à espera que tudo desabe para que tudo recomece com a mesma mentalidade secular. A  esperteza do vilão, do saqueador, é, e há-de ser sempre, o explorador da maior parte da Humanidade.
 
Os paradigmas culturais tradicionais levam ao crónico mau funcionamento da Economia, e esta sempre funcionou na obediência à exploração da força do trabalho, e de vez em quando produz crises, na certeza de que os trabalhadores são formigas que acumulam o mel das empresas, mas os seus detentores são os únicos que usufruem das mais valias e dos lucros desmedidos, e especialmente quando por cima de todos as cigarras (que no colectivo é o mesmo que A FINANÇA) encantam com a sua linguagem criativa, mas enganadora, os cidadãos; os empreendedores  ajoelham-se ao poder do dinheiro para dela receberem algumas sobras na forma de crédito com juros mais ou menos especulativos. E os políticos, os políticos, enfim, pensam no seu presente e no seu futuro à espera de todas as benesses. Este 2009 vai ser propício a muitas e justas acusações, e o seu final vai ser seguido com muita curiosidade de forma a melhorar uma sabedoria política e sociológica generalizada que ainda vai no adro da igreja. Os que no seu seio deste descalabro têm o rabo entalado desejarão que o ano passe depressa. E os conscientes da situação quererão que haja mudanças, ou seja, muitas rápidas alterações mutativas da cultura dominante, traduzidas em mudanças políticas de relevo para que surja o despertar dum novo Humanismo.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Um Caleidoscópio Sensacional - Daniel Cristal


Ir ao fundo do rio ou do mar, não é novidade para ninguém. Mas não venha logo ao de cima, e observe por um minuto (um minuto só, na vida de um nómada, pode ser uma infinidade), as margens, as dunas, os prados e os montes, ainda dentro dele; eles não serão obviamente os mesmos da focagem costumeira, porém serão muito mais magníficos pela novidade. Pela imprevisão. Pela deformação. Obriga-nos a outras sensações visuais inusitadas.
Em vez da variedade nas mudanças que podem espicaçar a sua insatisfação pela monotonia e pela sensaboria da vida em que mergulhou, varie o seu modo de perspectiva sensória ao ver as coisas que o desacalantam, senão também vai andar de desalento em frustração até atingir o estado de maturidade absoluto, não sendo este resultado, o definitivo, certo, nem programável.
Olhar sem perspectiva é enfadonho, e com ela é magnífico. Simultaneamente, sem uma lente de aumento, o mundo tem pouca graça. Com esta, dilata-se o objectivo, estendendo-o até à graduação necessariamente ajustada às faculdades conseguidas pela interpretação da vida neste mundo. De maneira que antes das aventuras vivenciais com sentido aleatório, na busca de novas sensações que podem ser também repetitivas e enganadoras, suspenda o movimento errático e exercite a noção de perspectiva e de gradação ocular, não descurando ainda o som, o cheiro e a cor. O tacto só vem no final, porque ele age por atracção do desejo, reunidos (quando estiverem)
todos esses condicionalismos. Só se apalpa a matéria quando os outros sentidos estão prenhes. No ideário que proponho, admite-se a imersão e a observação micro e telescópica. A imersão permite ver o mundo por outro prisma, e torná-lo oblíquo, aquilatando-o pela máxima gradação possível no sentido ascendente e descendente. Lateralmente também.
Fuja por este processo, à banalidade com que o observamos todos os dias. Recrie e recreie. A partir daí passe a deformá-lo, que se sentirá melhor. Passe a vê-lo dentro da água na borda de todos os limites. Reinventará o que antes era vulgarizado. Debaixo de água o mundo é mais bonito pela imprevisão ou novidade. Não que seja mais belo, porque este é um todo, mas só nos termos descritos. Dispensamos até o arco-íris (sem nunca o desvalorizar), pois os peixes incorporam neles a sua cor. Todavia, ao interseccionar pela secante, na sua borda, a linearidade curva-se na trajectória. E é por isso que a surpresa e o pasmo se intensificam. Vale a pena então observá-lo com as lentes de aumento e de diminuição. Nunca mais será igual. Logo que este exercício seja apreendido e faça parte da sua vivência cotidiana, anteponha lentes de várias gradações aos seus olhos e pratique o exercício como uma regra primordial. Traga o mundo micro para o macro e vice-versa. O que é enorme, veja-o pequeno, e o que é minúsculo ajuste-o à sua medida. O mundo começa a ser a maravilha de um caleidoscópio multissensório. E a razão ilumina-se prenhe de sentidos...

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

As minhas Cinzas- Daniel Cristal


Quando eu morrer na bela metamorfose
que um dia me espera, só porque sim,
deitai-me para minha e vossa sorte
ao rio de mim que nunca teve fim!

Não apodreço na campa obscena
lançado à cova com todos os danos,
espectáculo banido já desta cena
para castigo dos eternos gusanos!
 
É isso que vos peço, familiares,
Amigos, conhecidos, alguns amores,
deitai-me ao rio que desagua nos mares
quebrados os fios das minha dores.

Às cinco da tarde, hora precisa
contidas as cinzas numa cesta de cana,
ainda melhor se houver uma brisa
por cima da antiga ponte romana…

Não quero apodrecer num mar de lama
podendo ainda reacender qualquer chama!

O rio da Graça é o local ideal,
Numa jarra de mármore ponham um cravo,
Que seja vermelho da terra natal,
Nascido e crescido em qualquer quelho!

Não rezeis, não, eu deixo um Requiem
Para ser declamado neste acto d' amor
- Que é o regresso à terra-mãe
À qual sempre dei o sumo valor!

Não quero apodrecer num mar de lama
Podendo ainda reacender qualquer chama!

A jarra de mármore vai pró jazigo
Da família paterna, e copiada
Noutra igual com as palavras que digo
Prá família materna, também muito amada.

Cerimónia simples sem choro ruim,
Sentir-vos-ei queridos em terra-mãe
mais dia menos dia perto de mim,
e verei neste acto a vós também…

Não quero apodrecer num mar de lama
Podendo ainda reacender qualquer chama!

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

ESTÉTICA # INESTÉTICA - Daniel Cristal


Muita da obra artística do nosso tempo é falcatrua, diz Vasco de Graça Moura. Indiscutível, tal afirmação. Boa verdade. Os críticos avisados têm essa percepção, mas o que é curioso é que quem a tenta (a falcatrua) encontra sempre uma pequena plateia de admiradores. Vá-se lá saber porquê (?). A ousadia, mesmo pateta, consegue resultados práticos, ainda que efémeros.

Interrogo-me se tudo não é ilusório como a existência da vida... Como em tudo, há um enigma indecifrável, mas que é especulado a torto e a direito, levando isto, ou não, em consideração.

Neste recente fórum mundial de inter e intra-actividade que privilegia a exposição na Internet dos trabalhos dos poetas, há uma nova descoberta, até aqui jamais vista e sentida. Falo naturalmente da chegada recente dos computadores pessoais e a sua globalização. Há uma forte interacção - entre os artistas e os leitores. O criativo pode estar diariamente a aferir o alcance da sua produção; a sua auto-confiança, auto-estima e amor-próprio aumentam pela aceitação do que produz por parte do receptor, especialmente quando ele se manifesta ou divulga a peça de que gosta e a comenta. Torna-se fiel pela via da inter-relação que estabelece no imediato ou no dia.

E o que mais sobressai, a meu ver, neste percurso dum autor que se quer relacionar no espaço virtual, é este novo modo de contacto, leitura e audição, que abarca depressa uma navegação por vários oceanos com milhões de curiosos; estabelece entre receptores e emissores laços de intimidade, cumplicidade e aproximação, gerando-se uma expressão de gostos, que influenciam positivamente um autor criativo, aberto ao mundo no qual vive.

E isso obriga-me a algumas reflexões: a fama de um poeta não é tão entendível quanto à primeira vista se pode crer. É um produto de muitos mistérios, de muito misticismo, de uma áurea criada que não se sabe, na maior parte dos casos, de onde provém, nem como acaba. Foge à razão, boa parte das vezes. Foge ao reconhecimento linear, é produto de vozes sibilinas oriundas do fundo da terra e que se colhem no mar, de ocultas potencialidades e de muitos sopros para-normais, outros que até serão facilmente observáveis se estiverem demasiado expostos pela origem da voga modal. Mas também há os que se evadem destas conclusões por um marketing estudado e eficaz.

Quantos poetas se tornam obstaculizados por forças dominantes, e outros se afamam por movimentos culturais que os escolhem, não sendo, porém, os mais valiosos numa hierarquia reconhecida pela grandeza duma estética criteriosa.

Creio que um dos mais claros óbices à aceitação, no caso da Poesia, nem é tanto o recorte com que é produzida, mas a escolha da linguagem que deveria acautelar a sua novidade, isto é, o seu impacto está muito dependente da surpresa na revelação da invenção frásica ou figurativa, e a apreciação do signo novo ou renovado num contexto original ou numa realidade transfigurada. E neste sentido, afirmo que há poetas que não têm o seu lugar ainda conhecido do grande público, nem reconhecido, contudo, são poetas de inegável valor. Recordo neste momento uma grande poetisa brasileira, quase desconhecida, que é uma maravilha de ser lida: Ana Merij, grande admiradora de Affonso Romano de Sant'Anna; repentinamente aparecida na Internet, também assim desapareceu sem deixar rasto.

Ao ler alguns poetas da moderna geração, assalta-me uma dúvida. Porque é que se desleixa o recorte e o verso metrificado? Por ignorância teimosa ou diletante? Porque se faz um verso com treze sílabas, seguido de outro com uma ou duas, e logo a seguir constrói um de cinco e outro seguido de catorze? Dir-me-ão que suporta a cadência do ritmo pessoal (goste-se, ou não se goste!). A verdade, porém, é que o Belo reúne a maior parte da humanidade à sua volta. Ele tem um percurso, com princípio e meio, possivelmente sem fim à vista. Todavia tem-no, e descurá-lo é a pauperização de conceitos e técnicas. E só por isso insisto na aceitação do que assim é considerado. E também concluo suspensivamente: é preciso estar atento ao comentário do leitor mais avisado. Ele ajuda a que se vá ao seu encontro, numa relação de 'feed-back' constantemente actualizada e melhorada.

Transcrevo um fragmento duma crítica laudativa de Eugénio de Andrade, de Carlos Mendes de Sousa, in «Cadernos de Sarrúbia», o seguinte extracto:

«A composição curta e a brevidade dos versos, encontram o mais acabado isomorfismo na escassez da paisagem da «ilha», poema que é, no livro, síntese e espelho da escrita nítida e despojada, na melhor tradição clássica:

A terra é magra.

Um sol de palha cobre a ilha

- e tudo é ilha à nossa roda,

espaço curto, amargo.

Para cuspir,

ou beber de um trago.»

O que aquele crítico quer dizer é que a tradição clássica é uma referência incontornável ainda nos nossos dias. A poesia de Eugénio é uma das que se mantém numa mescla de medievalismo e parnasianismo, purista na essência, mesmo que o recorte não seja mais o verso metrificado no paralelismo do acento tónico da sílaba preponderante, encaixado na simetria rítmica do conjunto em cada composição.

Poderíamos citar centenas de composições para reforçar a ideia de que é a linguagem que prevalece na Poesia. Debruço-me sobre este fragmento de Sophia de Mello Andresen:

«Apenas sei que caminho como quem

É olhado amado e conhecido

E por isso em cada gesto ponho

Solenidade e risco.»

in Obra Poética (Ed. Caminho)

Em quantos recortes poderíamos nós visualizar este trecho de Sophia, e em quantas combinações, e em quantos sintagmas? Porquê esta escolha?, poderíamos perguntar. Mas a poesia é dela, só ela a soube escolher, e só ela poderia explicar, se a isso se dispusesse. Poderia simplesmente dizer: não há explicação possível, a Poesia não se explica. E estaria no seu direito. Apenas, o leitor poderia ficar decepcionado pela falta de explicação, e reclamar, se também a isso estivesse disposto.

Parte do que foi dito leva-me a dizer que a Poetisa escolhe a sua própria respiração ou a respiração cadenciada da própria frase, e recorta-a por segmentos: sendo os circunstanciais deixados como versos soltos, intercalando outras vezes nestes expressões do modo ou tempo, causa, circunstância ou fim, ou uma sóbria característica destacada pela plurissignificação semântica num subsequente sintagma solitário; não descurando, como regra, o exercício musical da sonoridade apropriada, e sem, como regra, a ela estar obrigado.

Avançando agora para a correlação temática ao nível da Estética: as Artes andam todas de mãos juntas. Quando uma evolui numa determinada perspectiva, ou segue para novas vertentes, normalmente todas elas se aproximam ou associam. A evolução não se dá ao sabor do génio, mas ao sabor de todo um conjunto de evoluções naturais do ser humano e de tudo o que o envolve, ou, diria melhor, na ordem ao contrário. Os progressos na Ciência criam novas dependências na existência que se lhes adapta. A própria evolução mística e ideológica cria novas possibilidades de avanço na repercussão do homem tendo em conta a sua relação com a natureza. Deste modo, a Arte acompanha todos estes movimentos abstractos de avanço e de recuo. Mas, também não é facto único, nem pioneiro, a Arte tomar a dianteira, através da genialidade de um criador, artista ou filósofo. O romantismo começa com o 'Clair de Lune" e com a "Sonata Patética" de Beethoven, logo seguido na Literatura por Johann Wolfgang von Goethe, e o realismo com Charles Darwin.

Muita da obra artística do nosso tempo é falcatrua, disse, e repito, Vasco de Graça Moura. Indiscutível, tal afirmação. Boa verdade. Os críticos avisados têm essa percepção, mas o que é curioso é que quem a tenta (a falcatrua) encontra sempre uma pequena plateia de admiradores. Vá-se lá saber porquê (?). A ousadia, mesmo pateta, consegue resultados práticos, ainda que efémeros.

As formas de Arte que mais evoluções e revoluções têm sofrido ao longo da História, são a Pintura, seguida da Escultura, creio eu. A sua origem e o seu objectivo, mesmo que ocultos, são propícios à modificação e à metamorfose. Agrada à vista. Mas a Poesia e a Música são distintas na sua génese, recurso aos meios e funcionalidade. A Poesia não vive só da audição, alia a visão à audição, ainda que, até à segunda década do século passado, fosse esta faculdade o seu principal suporte tradicional. Mas isto não quer dizer que não se enverede por outras vias de funcionalidade e destino diferenciados, porque a Arte é filão que nunca se esgota. Quando muito pode é banalizar-se. De tanto querer subvertê-la podemos chegar ao impasse do contraditório. O que está revolucionado, vive constantemente da e na rotura, e torna-se também estagnado. E, se isto acontecer, não haverá mais conceito de revolução; consequentemente, nesse impasse, só a dialéctica poderá reequacionar o que parou no tempo.

Efectivamente, o que se pode interrogar, na Arte moderníssima, é se ainda há uma Estética, ou se se está a criar um conceito novo: o da Inestética. Uma Inestética que se dilui no seu próprio conceito operacional e tende à exaustão e à confusão pela falta de padrões estéticos ou uma análise valorativa da criação artística. Muito se tem especulado sobre a peça "Fonte" de Marcel Duchamp. Um urinol com um título e uma assinatura é no mínimo a rotura com toda a Estética e com o gosto artístico, e conduz a sensibilidade para a banalidade; a sua vulgarização leva-nos à anestesia da conceitualização da diferença e da graduação.

A canção moderna comprova a evolução poética. A ousadia na alteração de ritmos outrora fidelizados, ao juntar e harmonizar o que dantes era separado, e inseparável, é uma vertente comprovada por quem está atento à forma em que está trabalhada. A Música, até a erudita, caminha nessa vastidão que é a desarticulação do que antes era muito regrado para não destoar ou desarmonizar; também nesse percurso há uma via para a descoberta e para exercício experimental.

Tudo começa, ou deveria começar, por uma aprendizagem, ou seja, pela descoberta das técnicas que sempre regeram a obra de arte. O grande revolucionário da pintura moderna, Pablo Picasso, teve necessidade de teorizar acerca da sua própria arte, e foi na teorização que ele mostrou o quanto aprofundou em conhecimentos do Ofício escolhido e exercitado. Foi essa teorização que o deu a conhecer, e fez entender o que produzia. A partir daí compreendeu-se melhor a sua obra, e, por esse procedimento, abriu o caminho seguro a um escol de artistas famosos que se lhe seguiram.

Ilustrando este mini-ensaio com algumas curiosidades, direi: as fases experimentais de Picasso são muito interessantes para ajuizar qual é o curso de um percurso num processo revolucionário. Quando se compara com a arte de Salvador Dali, verifica-se que os dois são génios pelas suas particularidades genéticas, e a palavra génio não quer dizer deus ou semi-deus, mas sim o homem talentoso que consegue imprimir na obra a sua particularidade genética diferente e única, sendo digna de admiração globalizada; génio tem a ver com gene, genética, e só com uma grande dose de abstracção poderá erguer-se ao nível do mitológico ou do divino.

Contudo, termino como comecei: a intercomunicação, o constante diálogo, imediato, entre artista/artista e artista/leitor parece diluir a liberdade individual dispersa, essa que pode conduzir ao alheamento do prazer estético nos receptores, sendo este o risco que a Arte corre hodiernamente. Se um artista propõe uma peça considerando-a estética, o receptor está no seu pleno direito de recusar a proposta e considerá-la com pouco ou nenhum valor artístico. E na consequente reflexão, todos teremos certamente algo a aprender uns com os outros no processo do fazer contínuo.
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terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Para Luzia Ramos - Daniel Cristal

 
No meu coração mora uma estrela
muito brilhante (e é pequena)
tão pequena que é grande só de vê-la;
tem a pele de seda muito fina...
 
Ela tem a varinha de condão
(essa grande estrela pequenina)
e habita feliz no coração,
este seu coração que me anima.
 
Quando ela cintila vejo o luar,
um botão a florir tudo o que almejo
e o seu ramo verde sabe a mar.
 
O que vejo merece um longo beijo,
o meu maior carinho de emoção,
a rendição de amor do ser beirão.