OS POETAS AMAM-SE, ou seja o discurso que se segue, assim os estimula, e esta peça é um preito de homenagem à amizade, à afabilidade, à empatia, ao entendimento doutra razão, que nem dela tem muito - dado que os poetas estão fadados para se amarem.
Assustadora coisa rara de se dizer: os poetas amam-se. Não é esse amor vulgar, corriqueiro e conflituoso, envolvimento polémico num lugar comum, ou sentimento feito de avanços e recuos e percorrido a preceito pela normalidade do romanesco trivial. É outra coisa especial que nem se exprime por palavras (tão funda é!), tão virgem se manifesta que remonta ao alfa das origens do Universo e nem tem substância concreta tal e qual o conhecemos aqui e agora. Por isso, os poetas reconhecem-se no indizível e inefável, na pureza do pensamento, que é só emoção, antes da palavra.
E aqui está outra surpresa: é errado dizer que se não houvesse a palavra, não existiria o pensamento. A verdade é que o que mais se sente não possui palavras que o exprimem. As palavras gastaram-se com o uso que delas fizeram os nossos antecessores; poluíram-se diacronicamente em contextos de inapropriação.
Se quem lê, vibra com o poema, poeta é também, porque se lhe identifica, ainda que não escreva. Diria que até é mais poeta do que o poeta, pois aquele deixa-se arrastar pelos seus sentimentos (do receptor). Mais do que um mago, o poeta é um adivinho, intermediário, o médium, para voltar a ser mago e feiticeiro no momento de toda a transformação definitiva e neutra. E torna a sê-lo no momento da osmose em que emissor e receptor se confundem no mesmo espelho. O poeta revê-se no receptor e vice-versa. É neste momento que tudo se transforma, e jamais volta a ser o que era dantes. Nesta ordem de ideias, o que prevalece é a sensibilidade de quem recebe, pois que o poema nunca mais é do poeta, mas também de quem adquiriu todo o conteúdo. Será mais músico o compositor ou o que recebe a sua mensagem abstrata e sensível em êxtase? Possivelmente o segundo. O primeiro apenas (mas este apenas quer dizer o todo na graduação do absoluto) perscrutou a sensibilidade do quem o escuta por antecipação modal e a trabalhou até que fosse arte de sedução e empatia. Há assim sintonia total entre emissor e receptor; ambos usufrutuários da Beleza trabalhada. Quem não a recebeu como beleza, não é gémeo do artista, não sintoniza a obra, pode estar bloqueado por outros modos que não os propriamente ligados à Beleza da expressão e à sedução, essa que leva ao êxtase supremo e é fonte de maravilha essencial e existencial. Quem não se sente seduzido pelo Cântico dos Cânticos? Os poetas, certamente, dizem sim, como leitores, no fundo também seus produtores da obra que neles existe em estado letárgico ou bruto.
Não é nenhuma novidade dizer que o poeta desempenha um ofício e nele procura incessantemente empenhar-se e aperfeiçoar-se. E então quando o domina o que é que o complementa? É a alma poética que possui dentro de si. É ela que o distingue da galeria de outros escribas que não subiram, por forças intrínseca e extrínseca, mais um degrau no patamar do seu exercício literário. E arrisco mais um conceito: a originalidade não está no conteúdo, mas também na forma com a qual ele é transmitido. Para os exegetas da Arte pura, o que digo é tão límpido, penso eu, com a água da fonte mais pura e só desses me é possível aceitar qualquer crítica acerca desta asserção, no mesmo sentido de atingir a perfeição por subsídios ou aprendizagens de estesia própria, exercitada no seu laboratório de experiências artesanais ou artísticas.
E exemplifico: Shakespeare ficou conhecido como o melhor sonetista anglo-saxónico, mas a sua obra reflecte outros mundos que não se confinam a esta constatação; toda a sua obra é duma envergadura invulgar e ainda hoje exemplar e inspiradora de outros Mestres. E sê-la-á até à consumação dos séculos. Porque ele foi mais longe do que a superficialidade ocasional do pensamento linear. Penetrou, outrossim, no mundo dos mitos antropológicos, no mais obscuro submundo-supermundo das emoções e das sensações nunca ditas anteriormente do mesmo modo, mas afloradas pela sugestão que as faz reviver, intimamente, sem a percepção total do seu significado. É um retorno, sempre genial, à origem de todas começos; um universo com medos e fantasmas inominados e inomináveis. Alegorias sobre alegorias de maravilha sedutora, um esplendor de figuras reencarnadas.
Sinuoso percurso tem sofrido a Poesia até ao estado actual: o regresso pelo pensamento circunstancial ao classicismo, parece orientar os poetas, também libertados do espartilho e da armadura versificadora. E acrescento alguma reflexão sobre a Poética diacrónica, o que nos leva a analisar, por exemplo, a origem do verso sáfico. Provindo da poetisa Safo, que o criou, e desenvolveu na sua obra passional, e tendo sido destinado ao canto acompanhado pela lira, foi retomado por Horácio, exactamente com as mesmas acentuações tónicas nas 2ª, 4ª, 6ª, 7ª, 9ª e 11ª sílabas métricas. Do facto, podemos tirar algumas conclusões: a métrica foi uma invenção, apesar de muito elaborada pela razão e pela sensibilidade, e, nesta área, aliadas para produzirem efeitos sedutores e empáticos no receptor; ela não apareceu de forma espontânea como o canto do pássaro; procurou imitar ritmos da natureza do nosso ritmo biológico, do batimento cardíaco e da nossa sensibilidade, e ficou aberta a possibilidade, depois de 1915, data nevrálgica da mudança (com o aparecimento dos dadaístas), de o Poeta criar novos ritmos e cadências, neste tempo em que imperou a recusa da ordem formal, disciplinadora e normativa, possibilitando o caos; alguns estetas souberam aproveitar o momento modal para a desfiguração do molde e do recorte, contudo, no fundo, não fizeram mais do que dissimularem o ritmo subliminar, que revelava o domínio da versificação. Onde se simulou a desnormalização, depois de boa análise, resplandeceu a cadência consagrada simulada. A moda é efectivamente, uma renovação infinda de normas e conteúdos. Não admira por isso que o regresso ao classicismo seja também uma via possível, a qual começa, de igual modo no presente, a estar na moda. E ouso ir mais longe: a poesia clássica é o maior garante, a meu ver, da perpetuação deste género literário, ainda que goste de algum versolibrismo (leia-se também: dos versos livre e solto). Os melhores exemplos deste estado evolutivo da estesia poética, encontram-se em alguns Autores modernos, que seguem de perto Fernando Pessoa, ainda que não o admitam. Eugénio de Andrade, Miguel Torga, Herberto Helder, Ramos Rosa, Mário Cesarinny são bons exemplos do que penso. Na verdade, a contenção verbal é hoje um dos modos mais subtis para traduzir a beleza e de dizer o inédito, o indizível. No entanto, o que para mim é mais sensível, é que a construção do poema sob novo recorte e nova métrica, revela uma grande mestria na contenção linguística, obviamente verbal, e uma apropriação genial da cadência métrica, capaz de criar novos prazeres emocionais. Acho muito mais difícil escrever um poema em verso livre, do que na forma clássica (com algumas transgressões quando elas se impõem). No entanto, vejo que muito do que se quer impor como versolibrismo é tão só prosa poética, e seria muito agradável que os cultores o admitissem, porque assim tornar-se-iam admirados, em vez de rejeitados por quem é sensível a esta questão estética muito relevante na actualidade. Poucos seguem uma aproximação do classicismo pela via mais correcta: há rimas forçadas, que se anunciam e denunciam à distância e na proximidade. E é por causa disso que se pede mais trabalho e rigor: há que aplainar esse «modus faciendi», trabalhar o verso até que fique duma sobriedade extrema, a ideia fluída, o ritmo e a rima totalmente harmoniosos, a cadência na simplicidade absoluta, a harmonia na total escorreiteza, o depuramento de todo o ruído por mais insignificante que possa parecer.
Retomando o verso sáfico, o mais melódico que, desde o despertar das Artes Literárias, até agora existiu, e apenas para ilustrar, realçar e precisar as considerações aduzidas atrás: se ele foi originário da Antiguidade cultural helénica, e renasceu no verso latino com a predominância da mesma acentuação metrofónica, acontece todavia que nas línguas românicas, e com Petrarca ele assumiu um ritmo diferente, ainda que aproximado na modulação modelar. A aproximação levou a que acentuação tónica na 4ª, 8ª e 10ª sílabas, lhe desse a plasticidade e a versatilidade verbais para que fosse cantado e acompanhado pela lira, e mais tarde eventualmente pela cítola, viela e o rebec, e desde o Renascimento pelas guitarra e viola, em terras da diáspora lusa - americanas, africanas e asiáticas.
Há que fazer a diferença - e digo isto pela premência em situar conceitos na actualidade, entre a poesia artesanal e a artística; a artesanal - diríamos - que é a que se utiliza nos acrósticos, nas glosas, em muita da Literatura de cordel. Ela não deixa de ser agradável aos sentidos e apreciada por muitos literatos. O poeta usa aí a versificação, deixando que esta se sobreponha à ideia de salvaguardar a originalidade. Mas são sempre áreas de difícil limitação e separação literária por dificuldades de clivagem ou limitação. Também há obras artesanais que exprimem a originalidade do artífice; são as melhores dentre outras que não se diferenciam. A diferença de escalão entre a poesia artesanal e a artística, está no patamar abstracto da diferença pela distinção da excelência. É um degrau mais acima. Não é a versificação que domina e escraviza; porém, ao invés, são os instrumentos normativos da Arte que são submetidos à mestria do Poeta; são esses os meios ou os modos amestrados e submetidos ao bisturi, à lima, à lixa e à lapidação exclusiva do literato criador.
2 comentários:
Amigo, belo exposto sobre a profundidade da poesia e a sua ponte de ontem até hoje, com o titulo, - os poetas amam-se - penso que eles se amam atravez das suas obras, não a figura que assina, para esta há respeito e por vezes um grau de inveja, mas uma inveja artistica!... Quem nunca pensou ao ler certo texto, que gostaria de o ter assinado, uma demonstração de admiração, de respeito e de contentamento por existir na sua área de arte, tal texto, ou tais textos. Sim, o poeta ama-se, como dizes, os leitores são tão poetas como aquele que escreveu, pois a poesia só é sancionada pela leitura.
obrigado Daniel, por ofereceres este belo tratado à confraria poética e não só.
fernando oliveira
Os poetas amam-se - Daniel Cristal
RESPONDENDO AO SIGNIFICATIVO TEXTO :
Os poetas amam-se, e como nossos amigos, que tristeza, se fosse necessário só ama-los ausentes ou faltando. E exatamente ao contrario que é a verdade, por isso os poetas se amam e se distingue em muito duma paixão; pois aqui entre eles não há falta,não há ciúme, não a sofreguidão. Amamos os amigos poetas que temos, como são.A mais elevada amizade, não é uma paixão, mas uma virtude. Enfim, resumindo tudo, que os poetas se amam, de fato, é amor( um amigo poeta que não amaríamos não seria um amigo poeta).
É sempre um relicário ler o Mestre , pois , a cada leitura, inspiramos-nos com outros textos dentro do seu contexto.
Efigênia Coutinho
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