BEM-VINDOS

Obrigado pela sua chegada; não se esqueça que é de AMOR AGAPIANO* que essencialmento poeto, também erótico quando a propósito de algumas circunstâncias episódicas nas mais diversas proporções. Como estou avança(n)do no tempo, não se escandalize, porque o que é preciso erradicar do Mundo é o preconceito secular, topo onde está preponderantemente a regressão da Humanidade neste percurso da condição humana, nem sempre adequada ao futurecer* do Homem, albergado corporalmente neste Planeta, sem saber com precisão, na generalidade, onde está a sua/nossa Alma. [ Obs. os astericos* assinalam dois neologismos da nossa Língua ].

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quinta-feira, 29 de abril de 2010

Um Caleidoscópio Sensacional - Daniel Cristal


Ir ao fundo do rio ou do mar, não é novidade para ninguém. Mas não venha logo ao de cima, e observe por um minuto (um minuto só, na vida de um nómada, pode ser uma infinidade), as margens, as dunas, os prados e os montes, ainda dentro dele; eles não serão obviamente os mesmos da focagem costumeira, porém serão muito mais magníficos pela novidade. Pela imprevisão. Pela deformação. Obriga-nos a outras sensações visuais inusitadas.
Em vez da variedade nas mudanças que podem espicaçar a sua insatisfação pela monotonia e pela sensaboria da vida em que mergulhou, varie o seu modo de perspectiva sensória ao ver as coisas que o desacalantam, senão também vai andar de desalento em frustração até atingir o estado de maturidade absoluto, não sendo este resultado, o definitivo, certo, nem programável.
Olhar sem perspectiva é enfadonho, e com ela é magnífico. Simultaneamente, sem uma lente de aumento, o mundo tem pouca graça. Com esta, dilata-se o objectivo, estendendo-o até à graduação necessariamente ajustada às faculdades conseguidas pela interpretação da vida neste mundo. De maneira que antes das aventuras vivenciais com sentido aleatório, na busca de novas sensações que podem ser também repetitivas e enganadoras, suspenda o movimento errático e exercite a noção de perspectiva e de gradação ocular, não descurando ainda o som, o cheiro e a cor. O tacto só vem no final, porque ele age por atracção do desejo, reunidos (quando estiverem)
todos esses condicionalismos. Só se apalpa a matéria quando os outros sentidos estão prenhes. No ideário que proponho, admite-se a imersão e a observação micro e telescópica. A imersão permite ver o mundo por outro prisma, e torná-lo oblíquo, aquilatando-o pela máxima gradação possível no sentido ascendente e descendente. Lateralmente também.
Fuja por este processo, à banalidade com que o observamos todos os dias. Recrie e recreie. A partir daí passe a deformá-lo, que se sentirá melhor. Passe a vê-lo dentro da água na borda de todos os limites. Reinventará o que antes era vulgarizado. Debaixo de água o mundo é mais bonito pela imprevisão ou novidade. Não que seja mais belo, porque este é um todo, mas só nos termos descritos. Dispensamos até o arco-íris (sem nunca o desvalorizar), pois os peixes incorporam neles a sua cor. Todavia, ao interseccionar pela secante, na sua borda, a linearidade curva-se na trajectória. E é por isso que a surpresa e o pasmo se intensificam. Vale a pena então observá-lo com as lentes de aumento e de diminuição. Nunca mais será igual. Logo que este exercício seja apreendido e faça parte da sua vivência cotidiana, anteponha lentes de várias gradações aos seus olhos e pratique o exercício como uma regra primordial. Traga o mundo micro para o macro e vice-versa. O que é enorme, veja-o pequeno, e o que é minúsculo ajuste-o à sua medida. O mundo começa a ser a maravilha de um caleidoscópio multissensório. E a razão ilumina-se prenhe de sentidos...

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

As minhas Cinzas- Daniel Cristal


Quando eu morrer na bela metamorfose
que um dia me espera, só porque sim,
deitai-me para minha e vossa sorte
ao rio de mim que nunca teve fim!

Não apodreço na campa obscena
lançado à cova com todos os danos,
espectáculo banido já desta cena
para castigo dos eternos gusanos!
 
É isso que vos peço, familiares,
Amigos, conhecidos, alguns amores,
deitai-me ao rio que desagua nos mares
quebrados os fios das minha dores.

Às cinco da tarde, hora precisa
contidas as cinzas numa cesta de cana,
ainda melhor se houver uma brisa
por cima da antiga ponte romana…

Não quero apodrecer num mar de lama
podendo ainda reacender qualquer chama!

O rio da Graça é o local ideal,
Numa jarra de mármore ponham um cravo,
Que seja vermelho da terra natal,
Nascido e crescido em qualquer quelho!

Não rezeis, não, eu deixo um Requiem
Para ser declamado neste acto d' amor
- Que é o regresso à terra-mãe
À qual sempre dei o sumo valor!

Não quero apodrecer num mar de lama
Podendo ainda reacender qualquer chama!

A jarra de mármore vai pró jazigo
Da família paterna, e copiada
Noutra igual com as palavras que digo
Prá família materna, também muito amada.

Cerimónia simples sem choro ruim,
Sentir-vos-ei queridos em terra-mãe
mais dia menos dia perto de mim,
e verei neste acto a vós também…

Não quero apodrecer num mar de lama
Podendo ainda reacender qualquer chama!

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

ESTÉTICA # INESTÉTICA - Daniel Cristal


Muita da obra artística do nosso tempo é falcatrua, diz Vasco de Graça Moura. Indiscutível, tal afirmação. Boa verdade. Os críticos avisados têm essa percepção, mas o que é curioso é que quem a tenta (a falcatrua) encontra sempre uma pequena plateia de admiradores. Vá-se lá saber porquê (?). A ousadia, mesmo pateta, consegue resultados práticos, ainda que efémeros.

Interrogo-me se tudo não é ilusório como a existência da vida... Como em tudo, há um enigma indecifrável, mas que é especulado a torto e a direito, levando isto, ou não, em consideração.

Neste recente fórum mundial de inter e intra-actividade que privilegia a exposição na Internet dos trabalhos dos poetas, há uma nova descoberta, até aqui jamais vista e sentida. Falo naturalmente da chegada recente dos computadores pessoais e a sua globalização. Há uma forte interacção - entre os artistas e os leitores. O criativo pode estar diariamente a aferir o alcance da sua produção; a sua auto-confiança, auto-estima e amor-próprio aumentam pela aceitação do que produz por parte do receptor, especialmente quando ele se manifesta ou divulga a peça de que gosta e a comenta. Torna-se fiel pela via da inter-relação que estabelece no imediato ou no dia.

E o que mais sobressai, a meu ver, neste percurso dum autor que se quer relacionar no espaço virtual, é este novo modo de contacto, leitura e audição, que abarca depressa uma navegação por vários oceanos com milhões de curiosos; estabelece entre receptores e emissores laços de intimidade, cumplicidade e aproximação, gerando-se uma expressão de gostos, que influenciam positivamente um autor criativo, aberto ao mundo no qual vive.

E isso obriga-me a algumas reflexões: a fama de um poeta não é tão entendível quanto à primeira vista se pode crer. É um produto de muitos mistérios, de muito misticismo, de uma áurea criada que não se sabe, na maior parte dos casos, de onde provém, nem como acaba. Foge à razão, boa parte das vezes. Foge ao reconhecimento linear, é produto de vozes sibilinas oriundas do fundo da terra e que se colhem no mar, de ocultas potencialidades e de muitos sopros para-normais, outros que até serão facilmente observáveis se estiverem demasiado expostos pela origem da voga modal. Mas também há os que se evadem destas conclusões por um marketing estudado e eficaz.

Quantos poetas se tornam obstaculizados por forças dominantes, e outros se afamam por movimentos culturais que os escolhem, não sendo, porém, os mais valiosos numa hierarquia reconhecida pela grandeza duma estética criteriosa.

Creio que um dos mais claros óbices à aceitação, no caso da Poesia, nem é tanto o recorte com que é produzida, mas a escolha da linguagem que deveria acautelar a sua novidade, isto é, o seu impacto está muito dependente da surpresa na revelação da invenção frásica ou figurativa, e a apreciação do signo novo ou renovado num contexto original ou numa realidade transfigurada. E neste sentido, afirmo que há poetas que não têm o seu lugar ainda conhecido do grande público, nem reconhecido, contudo, são poetas de inegável valor. Recordo neste momento uma grande poetisa brasileira, quase desconhecida, que é uma maravilha de ser lida: Ana Merij, grande admiradora de Affonso Romano de Sant'Anna; repentinamente aparecida na Internet, também assim desapareceu sem deixar rasto.

Ao ler alguns poetas da moderna geração, assalta-me uma dúvida. Porque é que se desleixa o recorte e o verso metrificado? Por ignorância teimosa ou diletante? Porque se faz um verso com treze sílabas, seguido de outro com uma ou duas, e logo a seguir constrói um de cinco e outro seguido de catorze? Dir-me-ão que suporta a cadência do ritmo pessoal (goste-se, ou não se goste!). A verdade, porém, é que o Belo reúne a maior parte da humanidade à sua volta. Ele tem um percurso, com princípio e meio, possivelmente sem fim à vista. Todavia tem-no, e descurá-lo é a pauperização de conceitos e técnicas. E só por isso insisto na aceitação do que assim é considerado. E também concluo suspensivamente: é preciso estar atento ao comentário do leitor mais avisado. Ele ajuda a que se vá ao seu encontro, numa relação de 'feed-back' constantemente actualizada e melhorada.

Transcrevo um fragmento duma crítica laudativa de Eugénio de Andrade, de Carlos Mendes de Sousa, in «Cadernos de Sarrúbia», o seguinte extracto:

«A composição curta e a brevidade dos versos, encontram o mais acabado isomorfismo na escassez da paisagem da «ilha», poema que é, no livro, síntese e espelho da escrita nítida e despojada, na melhor tradição clássica:

A terra é magra.

Um sol de palha cobre a ilha

- e tudo é ilha à nossa roda,

espaço curto, amargo.

Para cuspir,

ou beber de um trago.»

O que aquele crítico quer dizer é que a tradição clássica é uma referência incontornável ainda nos nossos dias. A poesia de Eugénio é uma das que se mantém numa mescla de medievalismo e parnasianismo, purista na essência, mesmo que o recorte não seja mais o verso metrificado no paralelismo do acento tónico da sílaba preponderante, encaixado na simetria rítmica do conjunto em cada composição.

Poderíamos citar centenas de composições para reforçar a ideia de que é a linguagem que prevalece na Poesia. Debruço-me sobre este fragmento de Sophia de Mello Andresen:

«Apenas sei que caminho como quem

É olhado amado e conhecido

E por isso em cada gesto ponho

Solenidade e risco.»

in Obra Poética (Ed. Caminho)

Em quantos recortes poderíamos nós visualizar este trecho de Sophia, e em quantas combinações, e em quantos sintagmas? Porquê esta escolha?, poderíamos perguntar. Mas a poesia é dela, só ela a soube escolher, e só ela poderia explicar, se a isso se dispusesse. Poderia simplesmente dizer: não há explicação possível, a Poesia não se explica. E estaria no seu direito. Apenas, o leitor poderia ficar decepcionado pela falta de explicação, e reclamar, se também a isso estivesse disposto.

Parte do que foi dito leva-me a dizer que a Poetisa escolhe a sua própria respiração ou a respiração cadenciada da própria frase, e recorta-a por segmentos: sendo os circunstanciais deixados como versos soltos, intercalando outras vezes nestes expressões do modo ou tempo, causa, circunstância ou fim, ou uma sóbria característica destacada pela plurissignificação semântica num subsequente sintagma solitário; não descurando, como regra, o exercício musical da sonoridade apropriada, e sem, como regra, a ela estar obrigado.

Avançando agora para a correlação temática ao nível da Estética: as Artes andam todas de mãos juntas. Quando uma evolui numa determinada perspectiva, ou segue para novas vertentes, normalmente todas elas se aproximam ou associam. A evolução não se dá ao sabor do génio, mas ao sabor de todo um conjunto de evoluções naturais do ser humano e de tudo o que o envolve, ou, diria melhor, na ordem ao contrário. Os progressos na Ciência criam novas dependências na existência que se lhes adapta. A própria evolução mística e ideológica cria novas possibilidades de avanço na repercussão do homem tendo em conta a sua relação com a natureza. Deste modo, a Arte acompanha todos estes movimentos abstractos de avanço e de recuo. Mas, também não é facto único, nem pioneiro, a Arte tomar a dianteira, através da genialidade de um criador, artista ou filósofo. O romantismo começa com o 'Clair de Lune" e com a "Sonata Patética" de Beethoven, logo seguido na Literatura por Johann Wolfgang von Goethe, e o realismo com Charles Darwin.

Muita da obra artística do nosso tempo é falcatrua, disse, e repito, Vasco de Graça Moura. Indiscutível, tal afirmação. Boa verdade. Os críticos avisados têm essa percepção, mas o que é curioso é que quem a tenta (a falcatrua) encontra sempre uma pequena plateia de admiradores. Vá-se lá saber porquê (?). A ousadia, mesmo pateta, consegue resultados práticos, ainda que efémeros.

As formas de Arte que mais evoluções e revoluções têm sofrido ao longo da História, são a Pintura, seguida da Escultura, creio eu. A sua origem e o seu objectivo, mesmo que ocultos, são propícios à modificação e à metamorfose. Agrada à vista. Mas a Poesia e a Música são distintas na sua génese, recurso aos meios e funcionalidade. A Poesia não vive só da audição, alia a visão à audição, ainda que, até à segunda década do século passado, fosse esta faculdade o seu principal suporte tradicional. Mas isto não quer dizer que não se enverede por outras vias de funcionalidade e destino diferenciados, porque a Arte é filão que nunca se esgota. Quando muito pode é banalizar-se. De tanto querer subvertê-la podemos chegar ao impasse do contraditório. O que está revolucionado, vive constantemente da e na rotura, e torna-se também estagnado. E, se isto acontecer, não haverá mais conceito de revolução; consequentemente, nesse impasse, só a dialéctica poderá reequacionar o que parou no tempo.

Efectivamente, o que se pode interrogar, na Arte moderníssima, é se ainda há uma Estética, ou se se está a criar um conceito novo: o da Inestética. Uma Inestética que se dilui no seu próprio conceito operacional e tende à exaustão e à confusão pela falta de padrões estéticos ou uma análise valorativa da criação artística. Muito se tem especulado sobre a peça "Fonte" de Marcel Duchamp. Um urinol com um título e uma assinatura é no mínimo a rotura com toda a Estética e com o gosto artístico, e conduz a sensibilidade para a banalidade; a sua vulgarização leva-nos à anestesia da conceitualização da diferença e da graduação.

A canção moderna comprova a evolução poética. A ousadia na alteração de ritmos outrora fidelizados, ao juntar e harmonizar o que dantes era separado, e inseparável, é uma vertente comprovada por quem está atento à forma em que está trabalhada. A Música, até a erudita, caminha nessa vastidão que é a desarticulação do que antes era muito regrado para não destoar ou desarmonizar; também nesse percurso há uma via para a descoberta e para exercício experimental.

Tudo começa, ou deveria começar, por uma aprendizagem, ou seja, pela descoberta das técnicas que sempre regeram a obra de arte. O grande revolucionário da pintura moderna, Pablo Picasso, teve necessidade de teorizar acerca da sua própria arte, e foi na teorização que ele mostrou o quanto aprofundou em conhecimentos do Ofício escolhido e exercitado. Foi essa teorização que o deu a conhecer, e fez entender o que produzia. A partir daí compreendeu-se melhor a sua obra, e, por esse procedimento, abriu o caminho seguro a um escol de artistas famosos que se lhe seguiram.

Ilustrando este mini-ensaio com algumas curiosidades, direi: as fases experimentais de Picasso são muito interessantes para ajuizar qual é o curso de um percurso num processo revolucionário. Quando se compara com a arte de Salvador Dali, verifica-se que os dois são génios pelas suas particularidades genéticas, e a palavra génio não quer dizer deus ou semi-deus, mas sim o homem talentoso que consegue imprimir na obra a sua particularidade genética diferente e única, sendo digna de admiração globalizada; génio tem a ver com gene, genética, e só com uma grande dose de abstracção poderá erguer-se ao nível do mitológico ou do divino.

Contudo, termino como comecei: a intercomunicação, o constante diálogo, imediato, entre artista/artista e artista/leitor parece diluir a liberdade individual dispersa, essa que pode conduzir ao alheamento do prazer estético nos receptores, sendo este o risco que a Arte corre hodiernamente. Se um artista propõe uma peça considerando-a estética, o receptor está no seu pleno direito de recusar a proposta e considerá-la com pouco ou nenhum valor artístico. E na consequente reflexão, todos teremos certamente algo a aprender uns com os outros no processo do fazer contínuo.
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terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Para Luzia Ramos - Daniel Cristal

 
No meu coração mora uma estrela
muito brilhante (e é pequena)
tão pequena que é grande só de vê-la;
tem a pele de seda muito fina...
 
Ela tem a varinha de condão
(essa grande estrela pequenina)
e habita feliz no coração,
este seu coração que me anima.
 
Quando ela cintila vejo o luar,
um botão a florir tudo o que almejo
e o seu ramo verde sabe a mar.
 
O que vejo merece um longo beijo,
o meu maior carinho de emoção,
a rendição de amor do ser beirão.
 

domingo, 10 de janeiro de 2010

Acordo Ortográfico

O novo Acordo Ortográfico entrou em vigor em Janeiro de 2009. Mas, até 2012, decorre um período de transição, durante o qual ainda se pode utilizar a grafia actual.

Consultem todas as alterações do novo Acordo Ortográfico que entraram em vigor em 2010


Fonte: Revista Visão.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Um Amigo Salvou-me de um Afogamento


Era uma força arrastadora magnética que me puxava para o centro, sem que eu me conseguisse livrar do seu poder.
O Borges lá em cima do penedo a lançar-me a toalha comprida, e eu a agarrá-la com toda a minha força. O amigo a puxar, a puxar, ambos em pânico. Mas, ao cabo duma luta pela vida, lá se conseguiu salvar o mancebo do desastre fatal.
 
As temperaturas dos verões na capital do Norte, às vezes são tórridas. O escape ao calor sufocante é ir às praias e mergulhar na água fria do Atlântico.
 
No início dos anos sessenta do século passado, no Estio íamos às praias com um ou mais amigos. Do Porto à Foz é um instante. Naquele tempo os eléctricos resolviam-nos o percurso. Para ir ao a Leça e ao Cabo do Mundo era preciso um automóvel para o transporte nos caminhos de terra-batida, e aí havia menos embaraço. Quanto mais a Norte, menos veraneantes encontrávamos. A praia aí tinha e tem pequenas reentrâncias cujos rochedos abrigavam das nortadas os frequentadores. E era mesmo para aí que eu preferia ir, mas nunca ia sozinho, sem desprimor para a Foz que gostava também de frequentar. Aí chegados, despíamos a roupa e ficávamos em fatos de banho a bronzear a pele como lagartos a aquecer o sangue. Eventualmente dávamos uns passeios à beira-mar, olhávamos as garotas, e às vezes trazíamos mais companhia no regresso. O Castelo do Queijo alimentava-nos algumas imagens do Cavaleiro Andante, tornando este monumento mais exótico na nossa imaginação pelo simples prazer de o ter ao lado.
 
Por falar no Cavaleiro Andante que conquistava castelos no deserto como se fossem moinhos no Minho, nas Beiras ou na Estremadura, e era uma minha leitura obrigatória das estórias aos quadradinhos, convém também declarar que não perdia de igual modo a companhia do Mandrake, o mágico que fazia milagres em espantosas demonstrações.
 
Mas vamos à estória que me traz aqui: amigos há poucos, mas quando os há, há que conservá-los. Eles salvam-nos no pior momento dos riscos que corremos, quando estão ao lado ou por perto. São muitas vezes preciosos por nos darem a mão na ocasião de maior perigo. Apoiam-nos nos momentos incertos, nas indecisões, às vezes até se arriscam para nos salvarem das dificuldades. Pois, em conclusão, não ter amigos é um falta perniciosa para a vida em comunidade.
 
Narrando o episódio, foi assim: ali perto da foz do rio Douro no lugar chamado Cabo do Mundo, quase ao lado da Casa de Chá Restaurante Boa-Nova, onde foram esculpidos na pedra alguns versos pungentes de António Nobre, nesse dia decidi-me a mergulhar num mar mais ou menos agitado; ia comigo um colega do colégio João de Deus no Porto, que mal sabia nadar, mas que resolveu acompanhar-me para nos expormos ao Sol e recolhermos da queimadura um pouco de bronze.
E mergulhei nessas águas traiçoeiras.
Não sou exímio nadador mas faço à vontade uns cinquenta metros nadando de croll com regresso de costas. Contudo, depois de umas braçadas, senti que a água fazia redemoinho à volta do rochedo mais próximo e eu não conseguia livrar-me daquela força centrípeta.
A espiral resultante da corrente à volta do rochedo não me deixava chegar à praia.
 
Foi preciso o Borges alcançar o rochedo pela parte pedregosa que penetrava no mar e lançar-me uma tolha comprida para eu agarrá-la, firmar-me no penedo e subir a pulso a escarpa. As mãos sangravam no fim golpeadas pelas saliências das lapas e das arestas da rocha. Mas foi a minha sorte ir acompanhado.
Se eu estivesse sozinho certamente que seria vencido pela corrente, todavia com amigo por perto, foi a minha salvação.
 
Quando recordamos o episódio, o Borges ri-se, e eu também, mas na ocasião do acontecimento não foi nada divertido. Traduziu-se o evento num susto, que eu só reveria no mergulho às águas do rio Zambeze, também junto à sua desembocadura onde rabiam jacarés.
 
Por falar no Borges convém dizer que há amigos que nos acompanham desde a juventude até ao fim da existência. Conheci-o no Colégio João de Deus, e posfaciei na conta-capa um livro seu de narrativas, intitulado NÃO MATEM A ESPERANÇA, ambos fizemos em Coimbra a admissão à Universidade e fomos admitidos, cursámos juntos em Mafra um curso militar de Oficiais Milicianos, encontrámo-nos na guerra colonial em Mocímboa da Praia e Quelimane, retornámos ao convívio no Porto e em Gaia na idade adulta, nessa ocasião com famílias constituídas, e este laço de amizade continua hoje e só acabará quando não houver mais memória de nós, ou quando não houver mais memória simplesmente.
 
Por falar em Nogueira Borges, ele anda a tentar editar um livro na forma romanesca. E só ainda não editou porque os Editores não têm vocação para descobrir talentos.
E ele também acha que o caso de Miguel Torga é exemplar, mas é próprio do seu tempo: a competição naquele tempo era reduzida em comparação com a barafunda que vai no mercado livreiro da actualidade; hoje em dia, qualquer escriba mal amanhado desfruta de uma edição em papel em boas editoras, só porque apareceu algumas vezes na televisão num programa para mirones compulsivos ou numa revista que destaca escândalos ou aberrações sociais.
 
Concluindo o sumo da estória: a Amizade não tem preço nem é uma moeda de troca. É um bem precioso e generoso. Uma mão amiga pode salvar alguém dum acto de loucura, ou qualquer outra imprevidência, utilizando para o efeito qualquer instrumento que por ele seja segurado: um remo, uma corda, uma toalha estirada  até ao extremo na ocasião adequada, sujeito a precipitar-se na rocha húmida lodosa escorregadia, resultando desta tentativa de salvação um duplo desastre fatal.
  

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Ao Coentro de Pinho, ao amigo - Daniel Cristal

 
Exemplo de vida e de luta
igual não houve, incontestável...
já não falo da sua duração
que essa é, de longa, respeitável!
.
Falo de vida honrada, de nobreza,
dignidade, prestígio e singeleza,
que no trabalho foi forjada!
Deus o conservará, de tão falada...
.
Fui tão acarinhado, como Amigo,
que minha alma exulta de alegria
ao receber, de si, notícias pessoais
e outras, que leio nos jornais.
.
Gostava de ser também, pobre de mim,
esse exemplo que nunca alcançarei,
pois o meu foi tão atribulado
que só pode ser o que amei...
.
Amei o mundo, prendi-o fundo,
dei tudo para vivê-lo intensamente,
fui depredador de esperanças!
Deus me ajude e a vida me aguente...
.
Que o coração me falha e me morre,
de tanto ter a vida partilhado!
Aos noventa não chego, meu Amigo,
porque a meio já me sentia fatigado!
.
Mas, se com certeza aí não chego,
saboreio os que da vida fazem templo
tão belo tão longo abençoado,
tanto amor e prazer de ser exemplo!

domingo, 6 de dezembro de 2009

Sinfonia da Aventura - A Arnaldo Saraiva

 
Partir já no moliceiro
ou num barco de sargaço
naufragar no sol poente
apaixonante aventura
.
Moliceiro feito d'algas
quantas lágrimas e mágoas
nos arrastam à ventura
com moliço à mistura
.
Partir com o livre vento
engolfando as velas pandas
ao encontro do poente
ou contra a brisa sedenta
.
Partir para todo o sempre
numa quilha deslizante
enrugando pele lisa
de tanto sabor a sal
.
Partir nesse moliceiro
talvez seja apelo vão
uivo de mar como um cão
ou ânsia de peixe e pão!
.
Que te seduz sargaceiro
será mesmo a ventura
será ouro estrangeiro
com sargaço à mistura?
.
Rumar além partir já
rumar para todo o sempre
naufragar em água pura
apaixonante aventura.
 

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Tríptico (Veneração ao Douro) 3 - Daniel Cristal

 
Terras de Dionísio, casas
de lagares de pedra, muito antigas ;
Solarengas e com altas arcadas,
atravessadas são por grandes gigas.
.
Um povo a dançar com a vara na mão,
depois da vindima que colhe e que prima,
esforço gigante, vida de cão,
ao povo alegre veneramos estima.
.
Vede-o na azáfama, arregaçado,
descalço na rua e no lagar,
pisando a uva, tão adestrado...
o cheiro de mosto, põe-no a dançar.
.
E dança alegre com vara na mão,
na eira do dono depois do repasto,
o vira que faz dançar a Nação,
fermenta toda a casta, vinho casto.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Tríptico (Veneração ao Douro) 2 - Daniel Cristal

 
Terras escarpadas e aos socalcos,
com homens e mulheres na diária
azáfama duma existência térrea,
pela linha férrea são cortadas.
.
À espera do comboio sempre estão
os ganapos que vêm da Igreja
trazem como os pais a vara na mão
e na boca uma luz cor de cereja.
.
Deixam a missa, onde o padre saboreia
um licor mais saboroso que o amor,
é o vinho mais famoso: o Porto...
e o pão, que dão vida a qualquer morto.