BEM-VINDOS

Obrigado pela sua chegada; não se esqueça que é de AMOR AGAPIANO* que essencialmento poeto, também erótico quando a propósito de algumas circunstâncias episódicas nas mais diversas proporções. Como estou avança(n)do no tempo, não se escandalize, porque o que é preciso erradicar do Mundo é o preconceito secular, topo onde está preponderantemente a regressão da Humanidade neste percurso da condição humana, nem sempre adequada ao futurecer* do Homem, albergado corporalmente neste Planeta, sem saber com precisão, na generalidade, onde está a sua/nossa Alma. [ Obs. os astericos* assinalam dois neologismos da nossa Língua ].

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sexta-feira, 14 de maio de 2010

Falar De, Por Metáforas - Daniel Cristal


O espaço do Poeta é este quem o faz. O sopro, conjunto de muitos ânimos, pode trazer-lhe o seu próprio lugar, ou deixá-lo morrer na secura da sua falta de pujança. O dom, o ser dotado, aquilo a que chamam talento não é produto do querer ser, é algo que provém do imo, do âmago vibrante e ressonante; é a fonte que brota espontânea, explosiva com reservas subterrâneas, transborda sem vontade aparente; isso é a essência da brutalidade, mas é, na sequência, o objecto do trabalho do artífice. Do mineral bruto pode fazer a mais formosa pedra preciosa. Todavia, terá de a trabalhar, burilar. Algumas vezes precisa até de a marchetar.

De vez em quando chega-me via Internet e pelos CTT, não sei bem a razão, nem sei muito bem com que finalidade, poesia do mais variado teor: erudita, popular, semi-erudita, cordel, epopeica, kitsch; poesia, sim, variada, e, ou remetem-na directamente, suponho eu, para que dela tome conhecimento (no início tentaram desafiar-me para que eu opinasse - e ao criticar (a menos conseguida) suportei duras reacções de ressentimento agressivo), ou, em alternativa, para que pudesse e devesse abraçá-la empaticamente. Foi e é muito natural, expedientes deste género, no enquadramento tentado, ainda que, por enquanto, não seja totalmente nítida para mim a intenção suportada. Algum merecimento me atribuem neste meio virtual, e também editorial livreiro, ao ter de ser recompensado com estas investidas de reconhecimento ansiado; diremos algum carisma, que, se calhar, até está empolado, e, pessoalmente não descortino com nitidez o propósito, tudo isto apreciado pela modéstia genética e própria também do meu percurso formativo, no sítio onde não está alheio o estudo da filosofia oriental, certamente a mais conhecida no Ocidente pela Poesia de grandes estetas dessa outra metade do planeta; a modéstia e a simplicidade foram apreendidas nessa outra parte do mundo, que tem sido pouco divulgado deste lado, até ao momento; porém, esta curiosidade minha já advém da adolescência, e tenho-a retomado sempre que posso e muitas vezes a propósito de fenómenos que se dão nesta civilização, onde me situo, e me fazem conceber, tão objectivamente quanto possível, o Homem no seu tempo e no seu lugar, repartido por várias culturas e muitas sub-culturas. 

Apercebo-me até que na remessa de Poesia que me chega aos olhos, outra parte até impressa, há Poetas que admiro. No caso da ciber-escrita, apercebo-me de Poetas que, com desgosto meu, não estão editados nem expostos nas Livrarias mais prestigiadas, levando em conta que verdadeiramente lá deveriam ter o seu lugar. Os Editores livreiros não cumprem bem a função que lhes poderia e deveria estar destinada: editar a melhor Poesia e Prosa, e ela é bastante que se lê nos nossos dias, não obstante, ela estar bem patenteada em muitos Sites e E.Books deste acontecimento revolucionário do presente: o fenómeno informático ao serviço da Cultura e do Entretenimento; limitam-se os ditos divulgadores da imprensa escrita a re-editar as obras já consagradas, e alguns indómitos aventureiros avançam pela edição de um novato, às vezes pela mão de amizades feitas nos salões actuais de convívio cultural. Quem a eles não vai, como é o caso de muitos dos que admiro, está automaticamente afastado do público leitor de livros em papel. Há literatos que nem se importam muito deste estado editorial repetitivo e extremamente limitado... pois, como não vivem da escrita, podem muito bem fornecê-la gratuitamente, sem pedir nada em troca, por 

generosidade absoluta; contudo, no mínimo, é-lhes devido o reconhecimento, que normalmente é dado, com excepção de alguns casos: por exemplo, quando entram por azar em algum grupo atípico onde são cultivados 

com ar de patética soberba, o ressaibo e a aleivosia; pois, também os há bem pronunciados na forma do aprendiz com má-formação; mas esses grupos são logo evitados pelo literato mais digno e consciente do seu valor. Efectivamente, quando os melhores (e friso os melhores) estetas da Net me dirigiram o aplauso, nesse gesto simples e simpático verifiquei que não estava só, nem, tão pouco, menos acompanhado, e foi também devido a esta empatia gerada que deixei de titubear na procura de suportes de aceitação e acompanhamento. Estava por natureza aceite na certeza que havia espaço para admiração mútua, sem mais necessidade de sedução ou enleio, uma procura de espaço onde o estro embatesse ao desvendá-lo contra muralhas de má-formação, vigente ainda na cibervirtualidade, e que, suponho, jamais acabará. Faz parte da pior natureza humana humilhar e menosprezar outro-alguém, sempre que se pode, e ele deixa, essa natureza tal como a conhecemos desde o início da Humanidade, e que evolui com uma lentidão arrepiante.

Ainda muito recentemente fui alvo de ressentimento por não criticar pela positiva a poesia dum poeta que divulga como ninguém em listas de milhares de endereços, o que de mim recebe. Como sabido e público, deixei de comentar a poesia dos meus pares. Apenas digo que gosto quando gosto. Comentá-la seria ocupar eu o lugar que não é meu: e é o do crítico. Quando discorro poesia como arte suprema, apenas o faço para situar a que produzo, e não a que os outros operam. Ao ler António Ramos Rosa, também leio Melo e Castro, seu crítico. E entendo um e outro. Entendo o poeta que cria o seu mundo alegórico na arte que conseguiu apurar pela sua individualidade, e entendo o crítico que devaneia, com bons meios de exegese apreendidos, por dentro, fazendo ressaltar o que ela tem de melhor na expressão patenteada. Normalmente norteia-se pelas linhas de força que irrompem do texto elaborado. Nada é mais natural. A empatia, no entanto, criada pela poesia, é outra coisa; é um efeito que está intrínseco, é endógeno e exógeno, cria forças psíquicas, na codificação e descodificação, na feitura e apuramento, na apreensão, e capta, prende, aprisiona, ou, em alternativa, quase oposta, indefere, ou deixa lassa a corda que prolonga o cordão umbilical duma mãe estética aos filhos (aficionados) gerados numa corrente de ampla generalização do que é manifestado pelo saber, pela estesia, pelo sentimento, pela emoção.

E este estado de coisas, leva-me a falar nesta divagação, com que me divirto (seriamente), no discurso presente, a falar de metáforas.

Ocupar um espaço num lugar tão ocupado, é difícil e complicado! Nada mais nos é exigido e exigível do que ocupar a parte minúscula que nos cabe, se for caso disso. Porque se não for, o espaço vai-se abrindo, pé ante pé. Aos poucos, e muito naturalmente. A flor, a planta, a árvore, que singram, e ocupam o seu lugar, ocupam-no pela sua robustez, por todas as características que lhe são inerentes e as individualizam no momento da sua génese. É a origem do ser individualizado e libertado que virá a ocupar no seu desenvolvimento, a sua dimensão. Mas não depende unicamente das suas qualidades; depende, outrossim, simultaneamente, da qualidade dos outros.

O espaço do Poeta é este quem o faz. O sopro, conjunto de muitos ânimos, pode trazer-lhe o seu próprio lugar, ou deixá-lo morrer na secura da sua falta de pujança. O dom, o ser dotado, aquilo a que chamam talento não é produto do querer ser, é algo que provém do imo, do âmago vibrante e ressonante; é a fonte que brota espontânea, explosiva com reservas subterrâneas, transborda sem vontade aparente; isso é a essência da brutalidade, mas é, na sequência, o objecto do trabalho do artífice. Do mineral bruto pode fazer a mais formosa pedra preciosa. Todavia, terá de a trabalhar, burilar. Algumas vezes precisa até de a marchetar. E de sequência em sequência evidenciar-se-á o modo, a maneira, o jeito artístico de transformar matérias e sentidos pelo aperfeiçoamento. Que jeito lhe dará? Na imitação de todos os processos anteriores, levados a níveis evolutivos? Claro, assim dito para os artífices. Contudo, interpondo uma diferenciação, se for artista. Mas, sendo o esteta apenas um artífice, e este pode não se deixar ficar por ser apenas isso, é no estado de suplantação e refinamento que se gera o artista-esteta; nasce a obra de Arte ao individualizar a mais profunda subjectividade e o que nela é incomparável. A mão, o pensamento, a sensibilidade, a potência do saber acumulado, determinam o lugar ocupado ou a ocupar. E este abre-se pela naturalidade, ou seja, pela natureza da sua individualidade vincada no deslumbre.

Desde o simples artesão que sabe muito bem ocupar o seu espaço, e tem-no certamente garantido numa sociedade em que a cultura é o que é, não me alongo mais para não deixar aberturas por onde haja razão para ficar sujeita à depreciação; este estado conjuntural hodierno que vai perdurar por mais uns séculos, se, diga-se em abono da verdade, o planeta aguentar todas as barbaridades que lhe fazem ao vandalizá-lo e depauperá-lo como tem acontecido ultimamente, até ao estado do verdadeiro artista que metamorfoseia matéria e espírito, havemos de nos entreter com toda a espécie de Arte, dada em avanços e recuos, formais e substantivos; essa é a riqueza da diversidade, tal como a vemos hoje. As vias são múltiplas, o espaço abrangente. Quem cativa o artista? Quem adere à sua arte? As respostas são fáceis de obter; e estas traduzirão em primeira e última instâncias, o nível cultural de cada reacção manifestada. E entre os dois pólos divergentes numa distanciação que nunca é bi-polar, quem consegue o verdadeiro estado de empatia, consegue também servir de medianeiro na transformação da existência objectivada na melhoria da condição do Homem neste planeta; por ser pobre, e atávico em preconceitos e arquétipos milenares, quer enriquecer o estereotipo precedente numa evolução lentíssima, à custa da pobreza que nunca deveria ter existido.

Não é a primeira vez que o digo: a Arte vive da alegoria, depois dos dadaístas e do simbolismo nesta modernidade, e agora mais do que nunca. Porém, ela já provém da Idade Média, e é patente nas parábolas da Bíblia, e anteriormente, no tempo faraónico (ressaltada na esfinge e outros ícones conhecidos). A alegoria que tem o poder de fazer compreender e nessa compreensão ser apreendida nos planos da inconsciência, da subconsciência e da consciência, funciona melhor do que o texto denotativo e linear.

Thomas Moore (1774-1854), o mais célebre revolucionário renascentista, assim entendeu a criação da sua mensagem surpreendente, admirável e apologética. As parábolas de Jesus Cristo, o melhor comunicador do seu tempo, não são alheias a esta percepção, frisada e comentada pelo seu discípulo Mateus, 13-13. Aliás, na poesia oriental (desde a antiguidade), ela é utilizada pelos melhores estetas (ver Rabindranath Tagore), ou, na actualidade, Kahlil Gibran; a parábola, para quem a entende amplamente, é idêntica à alegoria, mas, na sua construção, não se socorre do mesmo artifício; enquanto aquela expõe um mundo paralelo com sentidos muito idênticos ao real, esta vive da ficção paralela e não sai desse mundo fictício. Nos dois horizontes imagísticos a simulação é real, e a realidade cria uma outra apresentada viável e possível; na sua apreensão fica aberta a possibilidade dos simulacros concretizarem-se mediante a alteração do arquétipo conservadoramente consciencializado, sendo o horizonte novo motivador dum novo arquétipo que se desenvolve no trajecto que vai da inconsciência à consciência, depois de ter vencido o estado subconsciente, e tornando-se perceptível na irrupção duma nova acção comportamental atípica, princípios e valores novos que podem irromper quando menos se espera; a nova acção, regida pelo novo arquétipo, é depois imitada nas relações inter-pessoais. E finalmente generaliza-se num círculo de mestres, expande-se pelas comunidades pela nova consciência, abrangendo de sequência em consequência uma (i)limitada universalidade.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Um 2010 Acusador - Armando Figueiredo


Nestes tempos de descalabro financeiro que acarreta o desmoronamento da Economia global, o medo apodera-se da sociedade ocidental e esquecem-se reflexões, deduções, desenvolvimentos psíquicos e sociais, em que desde há mais de duas décadas tínhamos vindo teoricamente a acreditar como probabilidades consistentes. Pelos vistos, o homem não abarca nem grande nem consistente memória; esta, ao contrário, é no tempo actual, pior do que há meio século atrás. Não dura mesmo mais do uma tempo muito curto.
 
Acreditámos que a revolução tecnológica viria trazer a este mundo um progresso espiritual e material à sociedade ocidental nunca dantes conseguido. A revolução industrial com os seus avanços experimentados à custa de reivindicações das classes trabalhadoras,  apoiadas pelos ideólogos, sindicalistas e políticos, foi perspectivando uma sociedade mais próspera e justa. Mas essa revolução tecnológica prometia outros avanços muito mais alargados, e não só qualitativos, como também quantitativos. A robotização até propiciava a que os trabalhadores trabalhassen em suas próprias casas e aí colaborassem para melhorar a sua vida pessoal e social, ou seja para melhorarem em suma a sociedade onde estamos todos integrados, divididos em nações ou comunidades mais ou menos vastas. Claro que para atingir tal estado, as organizações políticas teriam de saber repartir o que face a essa tecnologia de ponta houvesse necessidade de repartir: isto é, a política deveria saber calcular a dimensão dos impostos de modo a que cada cidadão pudesse receber uma retribuição susceptível de assegurar as necessidades básicas, e algumas outras exigidas pela existência de uma vida que excluísse o medo do futuro.
 
Esperava-se isso, mas nada disto aconteceu. Aconteceu, ao contrário a desenfreada caça ao lucro que só aproveitou aos detentores dos meios de produção. Estes sugavam e sugam todo o lucro que é gerado, dissimula perdas onde há ganhos, usam da astúcia e da esperteza enganosa para adquirirem bens para enriquecimento pessoal desmedido e incontrolado.
 
Os governos acreditaram na inevitabilidade da ganância e a ela se aliaram para que pudessem usufruir da troca de favores entre poderosos, e A FINANÇA foi assim implacavelmente dominando tudo e todos, na certeza de que as elites plutocráticas constituídas, fossem um mundo à parte toleradas pela maioria dos pensadores medianos do nosso tempo.
 
Todo esse mundo acabou. Ele está, no máximo tolerado, próximo do seu estertor. Os poderosos remeteram-se ao seu tradicional isolamento e mutismo manhoso, e procuram que toda a sociedade se habitue ao crónico estado de abandono pela luta de causas humanitárias e edificadoras dum mundo novo, e segue de derrota em derrota à espera que tudo desabe para que tudo recomece com a mesma mentalidade secular. A  esperteza do vilão, do saqueador, é, e há-de ser sempre, o explorador da maior parte da Humanidade.
 
Os paradigmas culturais tradicionais levam ao crónico mau funcionamento da Economia, e esta sempre funcionou na obediência à exploração da força do trabalho, e de vez em quando produz crises, na certeza de que os trabalhadores são formigas que acumulam o mel das empresas, mas os seus detentores são os únicos que usufruem das mais valias e dos lucros desmedidos, e especialmente quando por cima de todos as cigarras (que no colectivo é o mesmo que A FINANÇA) encantam com a sua linguagem criativa, mas enganadora, os cidadãos; os empreendedores  ajoelham-se ao poder do dinheiro para dela receberem algumas sobras na forma de crédito com juros mais ou menos especulativos. E os políticos, os políticos, enfim, pensam no seu presente e no seu futuro à espera de todas as benesses. Este 2009 vai ser propício a muitas e justas acusações, e o seu final vai ser seguido com muita curiosidade de forma a melhorar uma sabedoria política e sociológica generalizada que ainda vai no adro da igreja. Os que no seu seio deste descalabro têm o rabo entalado desejarão que o ano passe depressa. E os conscientes da situação quererão que haja mudanças, ou seja, muitas rápidas alterações mutativas da cultura dominante, traduzidas em mudanças políticas de relevo para que surja o despertar dum novo Humanismo.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Um Caleidoscópio Sensacional - Daniel Cristal


Ir ao fundo do rio ou do mar, não é novidade para ninguém. Mas não venha logo ao de cima, e observe por um minuto (um minuto só, na vida de um nómada, pode ser uma infinidade), as margens, as dunas, os prados e os montes, ainda dentro dele; eles não serão obviamente os mesmos da focagem costumeira, porém serão muito mais magníficos pela novidade. Pela imprevisão. Pela deformação. Obriga-nos a outras sensações visuais inusitadas.
Em vez da variedade nas mudanças que podem espicaçar a sua insatisfação pela monotonia e pela sensaboria da vida em que mergulhou, varie o seu modo de perspectiva sensória ao ver as coisas que o desacalantam, senão também vai andar de desalento em frustração até atingir o estado de maturidade absoluto, não sendo este resultado, o definitivo, certo, nem programável.
Olhar sem perspectiva é enfadonho, e com ela é magnífico. Simultaneamente, sem uma lente de aumento, o mundo tem pouca graça. Com esta, dilata-se o objectivo, estendendo-o até à graduação necessariamente ajustada às faculdades conseguidas pela interpretação da vida neste mundo. De maneira que antes das aventuras vivenciais com sentido aleatório, na busca de novas sensações que podem ser também repetitivas e enganadoras, suspenda o movimento errático e exercite a noção de perspectiva e de gradação ocular, não descurando ainda o som, o cheiro e a cor. O tacto só vem no final, porque ele age por atracção do desejo, reunidos (quando estiverem)
todos esses condicionalismos. Só se apalpa a matéria quando os outros sentidos estão prenhes. No ideário que proponho, admite-se a imersão e a observação micro e telescópica. A imersão permite ver o mundo por outro prisma, e torná-lo oblíquo, aquilatando-o pela máxima gradação possível no sentido ascendente e descendente. Lateralmente também.
Fuja por este processo, à banalidade com que o observamos todos os dias. Recrie e recreie. A partir daí passe a deformá-lo, que se sentirá melhor. Passe a vê-lo dentro da água na borda de todos os limites. Reinventará o que antes era vulgarizado. Debaixo de água o mundo é mais bonito pela imprevisão ou novidade. Não que seja mais belo, porque este é um todo, mas só nos termos descritos. Dispensamos até o arco-íris (sem nunca o desvalorizar), pois os peixes incorporam neles a sua cor. Todavia, ao interseccionar pela secante, na sua borda, a linearidade curva-se na trajectória. E é por isso que a surpresa e o pasmo se intensificam. Vale a pena então observá-lo com as lentes de aumento e de diminuição. Nunca mais será igual. Logo que este exercício seja apreendido e faça parte da sua vivência cotidiana, anteponha lentes de várias gradações aos seus olhos e pratique o exercício como uma regra primordial. Traga o mundo micro para o macro e vice-versa. O que é enorme, veja-o pequeno, e o que é minúsculo ajuste-o à sua medida. O mundo começa a ser a maravilha de um caleidoscópio multissensório. E a razão ilumina-se prenhe de sentidos...

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

As minhas Cinzas- Daniel Cristal


Quando eu morrer na bela metamorfose
que um dia me espera, só porque sim,
deitai-me para minha e vossa sorte
ao rio de mim que nunca teve fim!

Não apodreço na campa obscena
lançado à cova com todos os danos,
espectáculo banido já desta cena
para castigo dos eternos gusanos!
 
É isso que vos peço, familiares,
Amigos, conhecidos, alguns amores,
deitai-me ao rio que desagua nos mares
quebrados os fios das minha dores.

Às cinco da tarde, hora precisa
contidas as cinzas numa cesta de cana,
ainda melhor se houver uma brisa
por cima da antiga ponte romana…

Não quero apodrecer num mar de lama
podendo ainda reacender qualquer chama!

O rio da Graça é o local ideal,
Numa jarra de mármore ponham um cravo,
Que seja vermelho da terra natal,
Nascido e crescido em qualquer quelho!

Não rezeis, não, eu deixo um Requiem
Para ser declamado neste acto d' amor
- Que é o regresso à terra-mãe
À qual sempre dei o sumo valor!

Não quero apodrecer num mar de lama
Podendo ainda reacender qualquer chama!

A jarra de mármore vai pró jazigo
Da família paterna, e copiada
Noutra igual com as palavras que digo
Prá família materna, também muito amada.

Cerimónia simples sem choro ruim,
Sentir-vos-ei queridos em terra-mãe
mais dia menos dia perto de mim,
e verei neste acto a vós também…

Não quero apodrecer num mar de lama
Podendo ainda reacender qualquer chama!

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

ESTÉTICA # INESTÉTICA - Daniel Cristal


Muita da obra artística do nosso tempo é falcatrua, diz Vasco de Graça Moura. Indiscutível, tal afirmação. Boa verdade. Os críticos avisados têm essa percepção, mas o que é curioso é que quem a tenta (a falcatrua) encontra sempre uma pequena plateia de admiradores. Vá-se lá saber porquê (?). A ousadia, mesmo pateta, consegue resultados práticos, ainda que efémeros.

Interrogo-me se tudo não é ilusório como a existência da vida... Como em tudo, há um enigma indecifrável, mas que é especulado a torto e a direito, levando isto, ou não, em consideração.

Neste recente fórum mundial de inter e intra-actividade que privilegia a exposição na Internet dos trabalhos dos poetas, há uma nova descoberta, até aqui jamais vista e sentida. Falo naturalmente da chegada recente dos computadores pessoais e a sua globalização. Há uma forte interacção - entre os artistas e os leitores. O criativo pode estar diariamente a aferir o alcance da sua produção; a sua auto-confiança, auto-estima e amor-próprio aumentam pela aceitação do que produz por parte do receptor, especialmente quando ele se manifesta ou divulga a peça de que gosta e a comenta. Torna-se fiel pela via da inter-relação que estabelece no imediato ou no dia.

E o que mais sobressai, a meu ver, neste percurso dum autor que se quer relacionar no espaço virtual, é este novo modo de contacto, leitura e audição, que abarca depressa uma navegação por vários oceanos com milhões de curiosos; estabelece entre receptores e emissores laços de intimidade, cumplicidade e aproximação, gerando-se uma expressão de gostos, que influenciam positivamente um autor criativo, aberto ao mundo no qual vive.

E isso obriga-me a algumas reflexões: a fama de um poeta não é tão entendível quanto à primeira vista se pode crer. É um produto de muitos mistérios, de muito misticismo, de uma áurea criada que não se sabe, na maior parte dos casos, de onde provém, nem como acaba. Foge à razão, boa parte das vezes. Foge ao reconhecimento linear, é produto de vozes sibilinas oriundas do fundo da terra e que se colhem no mar, de ocultas potencialidades e de muitos sopros para-normais, outros que até serão facilmente observáveis se estiverem demasiado expostos pela origem da voga modal. Mas também há os que se evadem destas conclusões por um marketing estudado e eficaz.

Quantos poetas se tornam obstaculizados por forças dominantes, e outros se afamam por movimentos culturais que os escolhem, não sendo, porém, os mais valiosos numa hierarquia reconhecida pela grandeza duma estética criteriosa.

Creio que um dos mais claros óbices à aceitação, no caso da Poesia, nem é tanto o recorte com que é produzida, mas a escolha da linguagem que deveria acautelar a sua novidade, isto é, o seu impacto está muito dependente da surpresa na revelação da invenção frásica ou figurativa, e a apreciação do signo novo ou renovado num contexto original ou numa realidade transfigurada. E neste sentido, afirmo que há poetas que não têm o seu lugar ainda conhecido do grande público, nem reconhecido, contudo, são poetas de inegável valor. Recordo neste momento uma grande poetisa brasileira, quase desconhecida, que é uma maravilha de ser lida: Ana Merij, grande admiradora de Affonso Romano de Sant'Anna; repentinamente aparecida na Internet, também assim desapareceu sem deixar rasto.

Ao ler alguns poetas da moderna geração, assalta-me uma dúvida. Porque é que se desleixa o recorte e o verso metrificado? Por ignorância teimosa ou diletante? Porque se faz um verso com treze sílabas, seguido de outro com uma ou duas, e logo a seguir constrói um de cinco e outro seguido de catorze? Dir-me-ão que suporta a cadência do ritmo pessoal (goste-se, ou não se goste!). A verdade, porém, é que o Belo reúne a maior parte da humanidade à sua volta. Ele tem um percurso, com princípio e meio, possivelmente sem fim à vista. Todavia tem-no, e descurá-lo é a pauperização de conceitos e técnicas. E só por isso insisto na aceitação do que assim é considerado. E também concluo suspensivamente: é preciso estar atento ao comentário do leitor mais avisado. Ele ajuda a que se vá ao seu encontro, numa relação de 'feed-back' constantemente actualizada e melhorada.

Transcrevo um fragmento duma crítica laudativa de Eugénio de Andrade, de Carlos Mendes de Sousa, in «Cadernos de Sarrúbia», o seguinte extracto:

«A composição curta e a brevidade dos versos, encontram o mais acabado isomorfismo na escassez da paisagem da «ilha», poema que é, no livro, síntese e espelho da escrita nítida e despojada, na melhor tradição clássica:

A terra é magra.

Um sol de palha cobre a ilha

- e tudo é ilha à nossa roda,

espaço curto, amargo.

Para cuspir,

ou beber de um trago.»

O que aquele crítico quer dizer é que a tradição clássica é uma referência incontornável ainda nos nossos dias. A poesia de Eugénio é uma das que se mantém numa mescla de medievalismo e parnasianismo, purista na essência, mesmo que o recorte não seja mais o verso metrificado no paralelismo do acento tónico da sílaba preponderante, encaixado na simetria rítmica do conjunto em cada composição.

Poderíamos citar centenas de composições para reforçar a ideia de que é a linguagem que prevalece na Poesia. Debruço-me sobre este fragmento de Sophia de Mello Andresen:

«Apenas sei que caminho como quem

É olhado amado e conhecido

E por isso em cada gesto ponho

Solenidade e risco.»

in Obra Poética (Ed. Caminho)

Em quantos recortes poderíamos nós visualizar este trecho de Sophia, e em quantas combinações, e em quantos sintagmas? Porquê esta escolha?, poderíamos perguntar. Mas a poesia é dela, só ela a soube escolher, e só ela poderia explicar, se a isso se dispusesse. Poderia simplesmente dizer: não há explicação possível, a Poesia não se explica. E estaria no seu direito. Apenas, o leitor poderia ficar decepcionado pela falta de explicação, e reclamar, se também a isso estivesse disposto.

Parte do que foi dito leva-me a dizer que a Poetisa escolhe a sua própria respiração ou a respiração cadenciada da própria frase, e recorta-a por segmentos: sendo os circunstanciais deixados como versos soltos, intercalando outras vezes nestes expressões do modo ou tempo, causa, circunstância ou fim, ou uma sóbria característica destacada pela plurissignificação semântica num subsequente sintagma solitário; não descurando, como regra, o exercício musical da sonoridade apropriada, e sem, como regra, a ela estar obrigado.

Avançando agora para a correlação temática ao nível da Estética: as Artes andam todas de mãos juntas. Quando uma evolui numa determinada perspectiva, ou segue para novas vertentes, normalmente todas elas se aproximam ou associam. A evolução não se dá ao sabor do génio, mas ao sabor de todo um conjunto de evoluções naturais do ser humano e de tudo o que o envolve, ou, diria melhor, na ordem ao contrário. Os progressos na Ciência criam novas dependências na existência que se lhes adapta. A própria evolução mística e ideológica cria novas possibilidades de avanço na repercussão do homem tendo em conta a sua relação com a natureza. Deste modo, a Arte acompanha todos estes movimentos abstractos de avanço e de recuo. Mas, também não é facto único, nem pioneiro, a Arte tomar a dianteira, através da genialidade de um criador, artista ou filósofo. O romantismo começa com o 'Clair de Lune" e com a "Sonata Patética" de Beethoven, logo seguido na Literatura por Johann Wolfgang von Goethe, e o realismo com Charles Darwin.

Muita da obra artística do nosso tempo é falcatrua, disse, e repito, Vasco de Graça Moura. Indiscutível, tal afirmação. Boa verdade. Os críticos avisados têm essa percepção, mas o que é curioso é que quem a tenta (a falcatrua) encontra sempre uma pequena plateia de admiradores. Vá-se lá saber porquê (?). A ousadia, mesmo pateta, consegue resultados práticos, ainda que efémeros.

As formas de Arte que mais evoluções e revoluções têm sofrido ao longo da História, são a Pintura, seguida da Escultura, creio eu. A sua origem e o seu objectivo, mesmo que ocultos, são propícios à modificação e à metamorfose. Agrada à vista. Mas a Poesia e a Música são distintas na sua génese, recurso aos meios e funcionalidade. A Poesia não vive só da audição, alia a visão à audição, ainda que, até à segunda década do século passado, fosse esta faculdade o seu principal suporte tradicional. Mas isto não quer dizer que não se enverede por outras vias de funcionalidade e destino diferenciados, porque a Arte é filão que nunca se esgota. Quando muito pode é banalizar-se. De tanto querer subvertê-la podemos chegar ao impasse do contraditório. O que está revolucionado, vive constantemente da e na rotura, e torna-se também estagnado. E, se isto acontecer, não haverá mais conceito de revolução; consequentemente, nesse impasse, só a dialéctica poderá reequacionar o que parou no tempo.

Efectivamente, o que se pode interrogar, na Arte moderníssima, é se ainda há uma Estética, ou se se está a criar um conceito novo: o da Inestética. Uma Inestética que se dilui no seu próprio conceito operacional e tende à exaustão e à confusão pela falta de padrões estéticos ou uma análise valorativa da criação artística. Muito se tem especulado sobre a peça "Fonte" de Marcel Duchamp. Um urinol com um título e uma assinatura é no mínimo a rotura com toda a Estética e com o gosto artístico, e conduz a sensibilidade para a banalidade; a sua vulgarização leva-nos à anestesia da conceitualização da diferença e da graduação.

A canção moderna comprova a evolução poética. A ousadia na alteração de ritmos outrora fidelizados, ao juntar e harmonizar o que dantes era separado, e inseparável, é uma vertente comprovada por quem está atento à forma em que está trabalhada. A Música, até a erudita, caminha nessa vastidão que é a desarticulação do que antes era muito regrado para não destoar ou desarmonizar; também nesse percurso há uma via para a descoberta e para exercício experimental.

Tudo começa, ou deveria começar, por uma aprendizagem, ou seja, pela descoberta das técnicas que sempre regeram a obra de arte. O grande revolucionário da pintura moderna, Pablo Picasso, teve necessidade de teorizar acerca da sua própria arte, e foi na teorização que ele mostrou o quanto aprofundou em conhecimentos do Ofício escolhido e exercitado. Foi essa teorização que o deu a conhecer, e fez entender o que produzia. A partir daí compreendeu-se melhor a sua obra, e, por esse procedimento, abriu o caminho seguro a um escol de artistas famosos que se lhe seguiram.

Ilustrando este mini-ensaio com algumas curiosidades, direi: as fases experimentais de Picasso são muito interessantes para ajuizar qual é o curso de um percurso num processo revolucionário. Quando se compara com a arte de Salvador Dali, verifica-se que os dois são génios pelas suas particularidades genéticas, e a palavra génio não quer dizer deus ou semi-deus, mas sim o homem talentoso que consegue imprimir na obra a sua particularidade genética diferente e única, sendo digna de admiração globalizada; génio tem a ver com gene, genética, e só com uma grande dose de abstracção poderá erguer-se ao nível do mitológico ou do divino.

Contudo, termino como comecei: a intercomunicação, o constante diálogo, imediato, entre artista/artista e artista/leitor parece diluir a liberdade individual dispersa, essa que pode conduzir ao alheamento do prazer estético nos receptores, sendo este o risco que a Arte corre hodiernamente. Se um artista propõe uma peça considerando-a estética, o receptor está no seu pleno direito de recusar a proposta e considerá-la com pouco ou nenhum valor artístico. E na consequente reflexão, todos teremos certamente algo a aprender uns com os outros no processo do fazer contínuo.
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terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Para Luzia Ramos - Daniel Cristal

 
No meu coração mora uma estrela
muito brilhante (e é pequena)
tão pequena que é grande só de vê-la;
tem a pele de seda muito fina...
 
Ela tem a varinha de condão
(essa grande estrela pequenina)
e habita feliz no coração,
este seu coração que me anima.
 
Quando ela cintila vejo o luar,
um botão a florir tudo o que almejo
e o seu ramo verde sabe a mar.
 
O que vejo merece um longo beijo,
o meu maior carinho de emoção,
a rendição de amor do ser beirão.
 

domingo, 10 de janeiro de 2010

Acordo Ortográfico

O novo Acordo Ortográfico entrou em vigor em Janeiro de 2009. Mas, até 2012, decorre um período de transição, durante o qual ainda se pode utilizar a grafia actual.

Consultem todas as alterações do novo Acordo Ortográfico que entraram em vigor em 2010


Fonte: Revista Visão.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Um Amigo Salvou-me de um Afogamento


Era uma força arrastadora magnética que me puxava para o centro, sem que eu me conseguisse livrar do seu poder.
O Borges lá em cima do penedo a lançar-me a toalha comprida, e eu a agarrá-la com toda a minha força. O amigo a puxar, a puxar, ambos em pânico. Mas, ao cabo duma luta pela vida, lá se conseguiu salvar o mancebo do desastre fatal.
 
As temperaturas dos verões na capital do Norte, às vezes são tórridas. O escape ao calor sufocante é ir às praias e mergulhar na água fria do Atlântico.
 
No início dos anos sessenta do século passado, no Estio íamos às praias com um ou mais amigos. Do Porto à Foz é um instante. Naquele tempo os eléctricos resolviam-nos o percurso. Para ir ao a Leça e ao Cabo do Mundo era preciso um automóvel para o transporte nos caminhos de terra-batida, e aí havia menos embaraço. Quanto mais a Norte, menos veraneantes encontrávamos. A praia aí tinha e tem pequenas reentrâncias cujos rochedos abrigavam das nortadas os frequentadores. E era mesmo para aí que eu preferia ir, mas nunca ia sozinho, sem desprimor para a Foz que gostava também de frequentar. Aí chegados, despíamos a roupa e ficávamos em fatos de banho a bronzear a pele como lagartos a aquecer o sangue. Eventualmente dávamos uns passeios à beira-mar, olhávamos as garotas, e às vezes trazíamos mais companhia no regresso. O Castelo do Queijo alimentava-nos algumas imagens do Cavaleiro Andante, tornando este monumento mais exótico na nossa imaginação pelo simples prazer de o ter ao lado.
 
Por falar no Cavaleiro Andante que conquistava castelos no deserto como se fossem moinhos no Minho, nas Beiras ou na Estremadura, e era uma minha leitura obrigatória das estórias aos quadradinhos, convém também declarar que não perdia de igual modo a companhia do Mandrake, o mágico que fazia milagres em espantosas demonstrações.
 
Mas vamos à estória que me traz aqui: amigos há poucos, mas quando os há, há que conservá-los. Eles salvam-nos no pior momento dos riscos que corremos, quando estão ao lado ou por perto. São muitas vezes preciosos por nos darem a mão na ocasião de maior perigo. Apoiam-nos nos momentos incertos, nas indecisões, às vezes até se arriscam para nos salvarem das dificuldades. Pois, em conclusão, não ter amigos é um falta perniciosa para a vida em comunidade.
 
Narrando o episódio, foi assim: ali perto da foz do rio Douro no lugar chamado Cabo do Mundo, quase ao lado da Casa de Chá Restaurante Boa-Nova, onde foram esculpidos na pedra alguns versos pungentes de António Nobre, nesse dia decidi-me a mergulhar num mar mais ou menos agitado; ia comigo um colega do colégio João de Deus no Porto, que mal sabia nadar, mas que resolveu acompanhar-me para nos expormos ao Sol e recolhermos da queimadura um pouco de bronze.
E mergulhei nessas águas traiçoeiras.
Não sou exímio nadador mas faço à vontade uns cinquenta metros nadando de croll com regresso de costas. Contudo, depois de umas braçadas, senti que a água fazia redemoinho à volta do rochedo mais próximo e eu não conseguia livrar-me daquela força centrípeta.
A espiral resultante da corrente à volta do rochedo não me deixava chegar à praia.
 
Foi preciso o Borges alcançar o rochedo pela parte pedregosa que penetrava no mar e lançar-me uma tolha comprida para eu agarrá-la, firmar-me no penedo e subir a pulso a escarpa. As mãos sangravam no fim golpeadas pelas saliências das lapas e das arestas da rocha. Mas foi a minha sorte ir acompanhado.
Se eu estivesse sozinho certamente que seria vencido pela corrente, todavia com amigo por perto, foi a minha salvação.
 
Quando recordamos o episódio, o Borges ri-se, e eu também, mas na ocasião do acontecimento não foi nada divertido. Traduziu-se o evento num susto, que eu só reveria no mergulho às águas do rio Zambeze, também junto à sua desembocadura onde rabiam jacarés.
 
Por falar no Borges convém dizer que há amigos que nos acompanham desde a juventude até ao fim da existência. Conheci-o no Colégio João de Deus, e posfaciei na conta-capa um livro seu de narrativas, intitulado NÃO MATEM A ESPERANÇA, ambos fizemos em Coimbra a admissão à Universidade e fomos admitidos, cursámos juntos em Mafra um curso militar de Oficiais Milicianos, encontrámo-nos na guerra colonial em Mocímboa da Praia e Quelimane, retornámos ao convívio no Porto e em Gaia na idade adulta, nessa ocasião com famílias constituídas, e este laço de amizade continua hoje e só acabará quando não houver mais memória de nós, ou quando não houver mais memória simplesmente.
 
Por falar em Nogueira Borges, ele anda a tentar editar um livro na forma romanesca. E só ainda não editou porque os Editores não têm vocação para descobrir talentos.
E ele também acha que o caso de Miguel Torga é exemplar, mas é próprio do seu tempo: a competição naquele tempo era reduzida em comparação com a barafunda que vai no mercado livreiro da actualidade; hoje em dia, qualquer escriba mal amanhado desfruta de uma edição em papel em boas editoras, só porque apareceu algumas vezes na televisão num programa para mirones compulsivos ou numa revista que destaca escândalos ou aberrações sociais.
 
Concluindo o sumo da estória: a Amizade não tem preço nem é uma moeda de troca. É um bem precioso e generoso. Uma mão amiga pode salvar alguém dum acto de loucura, ou qualquer outra imprevidência, utilizando para o efeito qualquer instrumento que por ele seja segurado: um remo, uma corda, uma toalha estirada  até ao extremo na ocasião adequada, sujeito a precipitar-se na rocha húmida lodosa escorregadia, resultando desta tentativa de salvação um duplo desastre fatal.
  

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Ao Coentro de Pinho, ao amigo - Daniel Cristal

 
Exemplo de vida e de luta
igual não houve, incontestável...
já não falo da sua duração
que essa é, de longa, respeitável!
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Falo de vida honrada, de nobreza,
dignidade, prestígio e singeleza,
que no trabalho foi forjada!
Deus o conservará, de tão falada...
.
Fui tão acarinhado, como Amigo,
que minha alma exulta de alegria
ao receber, de si, notícias pessoais
e outras, que leio nos jornais.
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Gostava de ser também, pobre de mim,
esse exemplo que nunca alcançarei,
pois o meu foi tão atribulado
que só pode ser o que amei...
.
Amei o mundo, prendi-o fundo,
dei tudo para vivê-lo intensamente,
fui depredador de esperanças!
Deus me ajude e a vida me aguente...
.
Que o coração me falha e me morre,
de tanto ter a vida partilhado!
Aos noventa não chego, meu Amigo,
porque a meio já me sentia fatigado!
.
Mas, se com certeza aí não chego,
saboreio os que da vida fazem templo
tão belo tão longo abençoado,
tanto amor e prazer de ser exemplo!

domingo, 6 de dezembro de 2009

Sinfonia da Aventura - A Arnaldo Saraiva

 
Partir já no moliceiro
ou num barco de sargaço
naufragar no sol poente
apaixonante aventura
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Moliceiro feito d'algas
quantas lágrimas e mágoas
nos arrastam à ventura
com moliço à mistura
.
Partir com o livre vento
engolfando as velas pandas
ao encontro do poente
ou contra a brisa sedenta
.
Partir para todo o sempre
numa quilha deslizante
enrugando pele lisa
de tanto sabor a sal
.
Partir nesse moliceiro
talvez seja apelo vão
uivo de mar como um cão
ou ânsia de peixe e pão!
.
Que te seduz sargaceiro
será mesmo a ventura
será ouro estrangeiro
com sargaço à mistura?
.
Rumar além partir já
rumar para todo o sempre
naufragar em água pura
apaixonante aventura.