BEM-VINDOS

Obrigado pela sua chegada; não se esqueça que é de AMOR AGAPIANO* que essencialmento poeto, também erótico quando a propósito de algumas circunstâncias episódicas nas mais diversas proporções. Como estou avança(n)do no tempo, não se escandalize, porque o que é preciso erradicar do Mundo é o preconceito secular, topo onde está preponderantemente a regressão da Humanidade neste percurso da condição humana, nem sempre adequada ao futurecer* do Homem, albergado corporalmente neste Planeta, sem saber com precisão, na generalidade, onde está a sua/nossa Alma. [ Obs. os astericos* assinalam dois neologismos da nossa Língua ].

Pesquisar neste blogue

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

ANSIEDADE CONTIGO



Onde estás, meu leão... estarás nessa praia,
Que doira de amor, à espera de mim?
Estou sim, ó tigrina, eu estou nesta praia
Deserta de ti, num anseio sem fim!

Mas não sei como ir, há montes de vento,
Eu ardo de febre, tenho fome de ti!
Mirro de sede, minha tigrina, estou ao relento
Meu amor, não demores, na onda que ergui!

Estás à espera de mim, não sei como ir,
Enlouqueço de anseio, ó grande felino!
Na praia me mirro, ó doce tigrina,
Não sei porque morro, anda me ensina!

Eu quero ser tua, eu quero amar-te,
Com urgência, leão, amanhã será tarde...
Não esperes mais, eu quero ser teu,
Vem na estrela cadente, ou no sopro d'Orfeu!

Eu vou nesta Lua, ou nesta oração,
Quero ir e beijar o teu coração...
Estás tardando em chegar, na aurora polar, 
Não demores, tigrina, já tremo no mar!

Aí vou meu leão, meu sonho de jade,
qual estrela de verde na nossa união!
Não demores, tigrina, que tenho vontade 
De bem te sorver na escuridão!

Dez/2001

sábado, 17 de setembro de 2011

Mea Culpa



Eu não sou nada, Senhor,
Sou uma pedra perdida
Numa pedreira sombria.

Eu, eu não sou nada, Senhor,
Sou uma estrela ferida
Num horizonte sem dia.

Eu, eu não sou nada, Senhor,
Sou uma ave cativa
Posta aqui por engano.

....Que pena tenho dum anjo
Morrendo no infinito
De quem a mãe não tem seio!

Perdoai, Senhor, perdoai, 
Mas eu já não creio em nada,
Nem sequer em mim já creio...

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Psicobiografia



O meu nome é Armando, apelidado Figueiredo.
Com ele só prosando à sombra de algum vinhedo,
Ver-me-eis escrevendo.

Uso porém dois altérnimos, para exprimir o que sinto
Daniel é o mais terno, um hedonista retinto
Eugénio é o seu términos.

Términos de certo desgaste, Epicuro quase asceta,
Um Horácio quanto baste, quase estóico este poeta,
A limpidez do esteta.

Sua poesia corre o mundo, Angola, França e Argentina,
No Brasil é onde abundo, Portugal é minha sina
E aqui Pierrô e Columbina.

Desde adolescente que escrevo, fui formador de docentes...
Exilado em Londres e Paris, querrilheiro entre macondes,
No peito as armas de Avis.

Casei e procriei e dei amor. No Estado encontrei opositor,
Chacais perseguiram-me com dor, coagindo-me a ser outro condor,
Que ao verso dá a sua cor.

No Outono da vida e trapaceando-a, ao Verão retorno quando quero,
Sendo cada vez menos Armando e mais Eugénio, arcanjo vero,
E é nesta diversidade que sou uno.

domingo, 11 de setembro de 2011

ARTE DERROTISTA OU ARTE EDIFICANTE ?


Não é totalmente activa e convincente, a asserção de que o artista tenha que escolher a sua via estética pelo optimismo ou pelo pessimismo, pela positividade ou pela negatividade. Em face das opções: a Arte triste, negativa, depressiva, misógina e deprimente, ou a Arte alegre, positiva, edificante, empolgante, construtiva e construente, ele é levado pela sua interioridade psíquica a escolher. Está em causa nesta tomada de posição estética reactiva, a sua meninice, a adolescência, a aprendizagem, a sua particularidade emotiva, a sua idiossincrasia. Mas, se há particularidades que merecem respeito e reflexão, não há dúvida que estamos em presença de um dualismo capaz de arrebatar movimentos e confrontos saudáveis.

Quando Goëthe escreveu o Werther, o ambiente social e cultural estava propício para entender e admirar Beethoven, seu precursor na Música, e equacionar na vivência quotidiana o sentimento liberto de constrangimentos e amarras, a fantasia, a nostalgia, e o sonho do amor absoluto pela nova escola ambicionada: o romantismo. Da leitura deste livro resultaram muitos suicídios. Houve leitores, que se reviam no protagonista, e em presença do desfecho da narrativa, acharam que deviam também solucionar os seus conflitos sentimentais pelo suicídio. No fundo, era uma geração nova que despontava e se firmava, em luta contra a arrogância e o despotismo do tempo do 'Iluminismo' aristocrático, cerceador da liberdade de escolha nos sentimentos e nas relações que afectavam os jovens. e não só. O mesmo aconteceu quando o 'Romeu e Julieta' apareceu em livro na Literatura anglicana. É, com efeito, deste modo, que após Kant e a sua gélida filosofia racional, a juventude alemã abriu os horizontes para outras experiências, mais humanas, propagando o movimento pela Europa; essa juventude europeia que assim se deixou apoderar pela apreciação sensorial e artística duma outra expressão nova, que vinha a produzir os seus efeitos na melodia da sonata 'Ao Luar' ou na 'Quinta Sinfonia'. Era outra vivência vivida ao vivo, uma expressão estética que iniciava a sua nova apetência de viver um mundo diferente e revigorado.

Mas a ilação a extrair deste fenómeno geracional é sobretudo uma lição de escrita, a sua relação entre emissor e receptor, que se pode converter numa tese defensável. A escrita metamorfoseada em Arte pode influenciar o estado anímico do público leitor e/ou auditor. Tanto pode agarrá-lo pela emoção e destruir nele o gosto pela vida, como pode levá-lo a amá-la e a aperfeiçoar o seu desempenho existencial no sentido de cultivar o prazer de a abraçar todos os dias. Se lermos a poesia do 'Só' de António Nobre, somos levados a ser impregnados da sua visão triste de encarar a existência, porém ao lermos um livro cómico, irónico ou sarcástico, o efeito é oposto: rimos dos defeitos, rimo-nos de nós-próprios. Ora, aqui está um bom tema para ser desenvolvido. De que lado estamos nós neste dualismo? Estamos numa barca de tristeza que transportamos para os outros inconscientemente, de desolação, de pessimismo, de lamento e queixume, ou transferimo-nos por vontade própria para outra, onde a amizade é preponderante, e a força da alma tende a fazer espalhar entre todos a vontade de entre-ajuda, de alegria no amor conjunto, na prossecução animada de vitórias sobre as adversidades.

O raciocínio e a emoção possuem a expressão comunicativa na voz, porém para que perdurem, precisam de ser plasmados na sua visual representação gráfica. Lemo-los na escrita ou na película reproduzida. E se se trata de Arte, eles podem ser transmitidos em vários géneros instrumentais. O que se respira pela emoção a um nível mais profundo do que a percepção racional, é o aroma de agrado ou desagrado, e o que pode ser uma coisa ou outra, depende das educação, instrução e formação de quem o capta ao exercer a descodificação da obra em presença. Todavia também se pode aprender a alterar, aperfeiçoar e purificar o modo de apreciação, e o que hoje é cheiro estranho ou esquisito, amanhã pode ser cheiro agradável, adorável até. O que é preciso nestas matérias, é abrir a mente à compreensão e aquisição de novos meios de aferição pelo estudo que leva a uma maior amplidão dos fenómeno e prazer estéticos. E digo mais ainda: o que hoje pode agradar, amanhã pode não agradar assim tanto, tendo em conta o que se aprendeu e adquiriu intelectualmente entretanto; pode até tornar-se repulsivo. A matéria visada e o interesse devotado são vertentes determinantes duma evolução que não possui términos ajustado.

Contudo, voltamos ao dualismo inicial: estamos prontos a distribuir amor, influenciar pela positividade, pelo carinho e pela ternura, ou estamos barricados no nosso narcisismo e prontificamo-nos a chorar sem parar, para que a nossa amargura amargue por simpatia e osmose, como se fosse uma absorção anímica da impureza, os outros que nos lêem e inconscientemente se tornam amargos também?

Há uns tempos li uma reportagem sobre um dos bons cantores portugueses, chamado Vitorino. A certa altura este disse que não gostava de ver os quadros de Paula Rego porque os seus quadros mexiam com a sua sensibilidade, e atormentavam-no de noite, a seguir à observação dos mesmos. Ora, é isto mesmo que se pretende questionar: se a Arte pode gerar tormentos, ela pode também edificar novas emoções de modo a transformar o receptor num emocionado amigo da construção de sonhos belos, temperadores da natureza humana. Estarei eu enganado? Suponho que não para bem desta tese, cujos limites são balizados pelas pessoas leitoras, únicas mediadoras, eventualmente aptas a poder trazer restrições à expansão da alma numa abrangência dificilmente limitada.

Um caso evidente, entre muitos, da influência da Arte nos estados de alma dos cidadãos e sobretudo na juventude, é o da poesia de Manuel Alegre. Depois de eu ser incorporado no Exército obrigatório, como miliciano, em Mafra, as viagens que efectuávamos do Porto para aí, eram feitas de automóvel. Nelas ouvíamos cassetes de música onde estava gravada, entre muitas, a 'Trova ao Vento Que Passa'. A sua audição empolgava-nos (éramos quatro jovens a compartilhar os custos da viagem no automóvel de um deles). Essas canções ajudavam-nos a
aguentar, com tenacidade, a voz da resistência, e mantinham em nós a esperança da mudança; instigavam-nos deste modo a manifestarmos particular e publicamente a oposição ao regime político, na expressão do nosso descontentamento e desacordo, facto este preparatório do ambiente geracional e social no sentido de fortalecer a revolta, e especialmente para que ela acontecesse quando estivesse madura, como efectivamente sucedeu.

Sabemos também que a Arte ao serviço da guerra, do banditismo ou da maldade, é nociva e pode ser devastadora. As artes áudio-visuais são disso um exemplo flagrante. O incitamento à violência, a exposição do interior mais selvagem do homem, como uma particularidade de algo sinistramente poderoso, a cultura da morte marcial a pretexto rácico, religioso ou vingativo, a exploração da habilidade no manuseamento de armas mortíferas, a instigação ao exercício de formas oriundas da malvadez patológica, a instrução no exercício de instrumentos com o uso da perfídia em relação ao crime perpetrado, aguçam o engenho dos que sentem predisposição e aptidão para o seu culto. Alguns dos crimes sociais exercidos pela habilidade no uso de roubo estudado, são cópia do que se vê na televisão e no cinema. Nitzsche ao falar do super-homem prepara, sem disso ter a completa percepção, acho eu, a entrada de um psicopata na Chefia de uma Nação, e este recorre à escrita para afirmar e convencer os seus leitores arianos que a sua raça é superior, e, por ser assim, estaria fadada ao domínio e ao império universal. É um poder macabro, oposto a outro glorioso, esse que dualmente pode ser atribuído à escrita.

Mais empolgante é a voz que exprime o pensamento, a Oratória. Ela levanta e acicata multidões por boas ou más causas. Tem havido ao longo da História, exemplos encorajadores, e outros nefastos à interpretação filosófica da condição humana.

Também não é do nosso desconhecimento que as epopeias dos poetas moldaram e temperaram a alma dos povos a que pertencem. Os gregos e os romanos tiveram os seus intérpretes, os portugueses outro tanto. A somar a estes casos, podemos e devemos acrescentar a influência dos filósofos; estes aperfeiçoaram com a sua investigação as características e as raízes dos povos e das nações. E os romancistas, contistas, dramaturgos, instruíram os seus compatriotas, alguns até abrangendo cidadãos à escala universal, de maneira a melhor se conhecerem e interpretarem defeitos e virtudes do nosso presente e passado históricos, ainda que não estivesse na consciência, nem no propósito, essa vontade de interpretação da condição humana neste planeta, um conhecimento tão amplo, que, quando aprofundado, se torna e permanece pedagógico com paradigmas estatuídos e fixados nos diferentes estados e períodos sequenciais da Humanidade.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

"LUDUS - ARS EVOLUTUM "


(Apresentação de Daniel Cristal)

Daniel Cristal é um dos heterónimos de Armando Figueiredo (ortónimo), sendo o mais conhecido, e vai ser quem permanecerá entre nós. Os outros: Eugénio de São Vicente e José Vicente Portugal são
protagonistas dum percurso errático, imaginativo, criativo, não de Armando Figueiredo, mas de Daniel Cristal, que não são o mesmo. São ramos do mesmo tronco ou duas radículas do mesmo embrião. Ainda não
havia revelado, até ao momento, esta última anunciação e a existência do terceiro heterónimo. Já tinha falado de Eugénio e o seu modo de ser e de estar (o seu estoicismo angelical), mas José Vicente nasce ( e
ainda é jovem, quase adulto), como gérmen repartido e uno, da terra onde se amalgama no labor diário da agricultura (é lavrador, agricultor, labrego como dizem os galegos). Enquanto Eugénio tem um pé distendido na galáxia, José tem-no enterrado até ao centro da terra, descortinando mistérios em cada minério. É como se o arcanjo celestial se revertesse em agricultor rude e rústico numa atracção polar oposta.

Não há necessidade nenhuma de desenvolver ou explanar nenhum dos opostos unificados, isto é, amalgamados. Têm vida própria como tem a Terra com dois pólos opostos, mas integrantes do seu todo. E assim permanecerão. Nem um nem outro necessitam de mais evidência. São evidentes como tudo o que existe no corpo do Universo, basta olhá-lo, observá-lo como olhos a perscrutar a sua sinalética: a terra com as essências das vidas humana, animal, vegetal, mineral, e o firmamento com os enigmas a serem desvendados. Uma e outro carregados de sinais, que só as almas sensíveis e superiores vão desvendando, e deles vão dando testemunho pela sua obra. E também é aqui que se reforça ou revigora a existência, seja: a consistência de Daniel Cristal, quem domina o seu espaço balouçando entre um e outro, discípulo dos dois,
procurando aproximá-los sempre que haja necessidade disso e sempre que seja possível. Deixando-os também separados para a distinção que alguma vez se possa impor por necessidades de qualquer imperiosa
decorrência dialéctica.

Armando Figueiredo ficará sempre de fora, o prosador, o cronista, difusor da estesia, no apoio a Daniel Cristal. Eugénio ficará com a parte que lhe cabe e a sua obra maior: «FUTURECER»
http://www.avspe.eti.br/poetas/futurecer/index.html, e José com a sua
AGROPOESIA .

Acabaram assim as experiências heteronímicas. Uma só contará para ser destacada, DANIEL CRISTAL, amalgamando os dois outros - como discípulo de ambos e ao individualizá-los, reverte-se aprendiz deles como num jogo de espelhos paralelos, onde é mestre de si-próprio na reflexão simultânea e ambivalente. Frente e traseira incorporando um só corpo. Já repararam bem no que acontece na sequência vivencial à gema e à clara do ovo? Certo, transformam-se numa nova ave; a ave renovada, a perpetuação da espécie. E a vida não é mais do que isso... A sua renovação contínua em espécies, elementos de integração e categorias.

Alguns não gostarão certamente destas minhas elucubrações lúdicas, explicações claras e evidentes, aprofundadas, às vezes é muito bem capaz de ter de vir à superfície para respirar e continuar depois a mergulhar num mar bem fundo. Outros, possivelmente, até se divertirão com a minha dimensão plural, assim como acontece comigo... Verdade, divirto-me neste jogo «ludus» que mexe com muitas peças inusitadas, baralho-as, e volto a reconstituir o puzzle, ou então movimento-as com a finalidade de nunca existir o seu fim, porque uma vez acabado, dá-se início ao recomeço na perpetuação do enigma - estamos fadados para tal e havemos de recomeçar tudo de novo quantas vezes for preciso, simples e naturalmente para que se cumpra o desígnio da vida eterna; na forma evolutiva «evolutum» da senda da perfeição - não é previsível que o homem viva neste planeta para sempre, «ad aeternum»... o espaço é motivo de descoberta de maneira a que a vida divina e humana não tenha mais fim. Vida, sim, eterna. Noutros planetas, em forma mais aperfeiçoada.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

A Ampulheta do Tempo


Nesta plataforma propícia à meditação, onde me situo no estado actual,
verifico, com algum pesar e incómodo, que tenho andado algo arredado
do vosso convívio agradável, e dos amigos mais distantes no espaço
geofísico, coincidente por sinal com o mundo cibernáutico;
efectivamente, alguns estragos o tempo tem cometido no meu corpo,
próprios da idade e de alguns relativos excessos experimentados... mas
continuo por cá sorridente, apesar disso. Auto-limitado na acção por
decisão própria, receoso do desgaste temporal, cuidando dos arranjos
adequados aos órgãos vitais necessários, distanciado de projectos.
Apenas gozando o presente, quanto possível! Agradecendo a hora
escorrida em cada momento ao Arcanjo que resguarda e vela a mansidão
dos justos, na ambiência que nos cabe, graças também a vós. É, de
facto, um privilégio viver mais uma hora no interior do bojo do balão
fruindo do vosso saudável convívio...

É uma honra ser acolhido dia-após-dia nesta casa térrea onde
desfrutamos de carinhosa companhia; onde vemos crescer os nossos netos
passo-a-passo diferentes, mais soltos, mais afoitos, mais
surpreendentes, os filhos a tornarem-se adultos, fortes, eventualmente
com algumas cãs raiadas já na cabeleira, as filhas a tentarem agarrar
a felicidade possível, noras e genros a procurarem acertar com o
percurso que leva à plenitude do universo do amor.

Continuo, destarte, por cá sorridente e agradecido... não será por
muito tempo, certamente, no comum conceito de esvaziamento da
ampulheta. Quantos anos de poeira se mete dentro da ampulheta duma
existência? Cinquenta, setenta, noventa? Ninguém sabe quanto pó nos
está destinado, ou quanta energia e quanto tempo foram programados por
força da Natureza, na edificação do nosso élan-vital. Porém, não
esqueçamos, para favorecimento da nossa saúde e equilíbrio mental, que
é só pó, eventualmente brilhante e cintilante, ou areia; pouca
diferença faz, pó ou areia. Se for pó, ele avisa-nos todos os dias do
que nos espera na reversão. Se for areia pode levar-nos a acreditar
que ainda nos resta alguma ilusão da eternidade. Por curiosidade, nem
sabemos muito bem como se processa o milagre do estado contínuo.

Para viver mais uma hora, a partir da meia-idade, é preciso ter
renunciado anteriormente ao exercício de vícios e à prática de
excessos; esses que dão muito prazer sensorial, mas matam ou reduzem a
longevidade. É preciso resistir às drogas, ao tabagismo, aos excessos
de álcool e da comida, ao desregramento nos hábitos naturais e
salutares. São horas que farão falta à vida vivenciada com o prazer de
se estar vivo na plenitude do convívio humano saudável, horas
escorridas pelo orifício da ampulheta, que amaciam a alma com a
brandura da consciência de todos os objectivos cumpridos, todas as
obrigações satisfeitas, todos os deveres resgatados.

É um privilégio estar onde estamos, a ocupar o espaço que nos foi e
está destinado por forças  muito poderosas, sobrenaturais, quase
obscuras; há-de existir algum sentido para que cada um cumpra o seu
destino, algumas vezes num âmbito colectivo, outras individual. Somos
pertença de quem nos fez à semelhança de um deus original que tanto
vive quanto morre, para que tudo continue multiplicado numa ou noutra
parte do Universo, nesta forma e matéria, ou noutra possível, virtual,
casualmente, para nós, até desconhecida.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Amores Sublimes: Pedro e Inês


  Vive Inês com seu amor
  Entre jardins de ternura…
  De todas as cores, a cor
  Que maravilha a ventura!

  Linda Inês posta em sossego
  Numa margem do Mondego!

  Mas mais forte que o amor
  São as razões deste Estado!
  Temendo novo valor
  A perigar nosso agrado…

  Em causa a hierarquia
  Noite posta em cada dia!

  Inquieto está o Rei
  Seus vassalos e seu povo…
  Razões de Estado, que sei?
  Este caso não é novo!

  E no Mondego espelhada
  A sentença lhe foi dada!

  Algozes chegam armados
  Num tropel de guerra aberta,
  trazem elmos bronzeados
  Assassinos pela certa!

  Cuidado Inês vais morrer,
  Mais vale do que sofrer!

  Face àqueles carniceiros
  Diz Inês "Não tendes pena?
  Meu amor é dos primeiros
  No palco da melhor cena!"

  Recusa qualquer degredo,
  Não trairá o seu Pedro!

  "Como podeis, gente bruta,
  abeirar-vos de opróbrio
  contra este amor que exulta,
  porque tendes tanto ódio?

  Doidos carrascos, só tendes
  vis corações de duendes!

  "Inês, Inês, é a hora
  de volver à tua Espanha,
  vai-te daqui para fora,
  foge da nossa sanha!"

  Contesta assim um carrasco,
  O chefe de tanto asco!

  Morre Inês e deixa órfãos!
  Vive Pedro na revolta!
  Empedram-se-lhe os órgãos!
  As mágoas são sua escolta!

  Aguarda que morra o Rei
  Para impor a sua lei…

  Ditou Pedro lei severa:
  Quem a matou era cão!
  E com sua mão de fera
  Arrancou-lhe o coração!

  O Mondego de contente
  Vitoriou toda a gente!

  Nunca houve neste mundo
  Amor tão forte e fiel,
  Amor-contraste no fundo
  Da raiva cheia de fel!

  Uva madura na vinha,
  Viu-se Inês feita Rainha!

  Inês, Inês foi Rainha
  Neste Reino Lusitano!
  Era o amor que continha
  A sina do desengano!

  Pedro foi o vingador,
  Mondego o rio de amor!

terça-feira, 1 de março de 2011

Kervansaray

.
Estávamos em Kervansaray (Bodrum – Turquia). O Sol anunciava-se pela luz e pela ausência. A ausência dizia muito mais do que a sua presença. Como acontece com qualquer deus. A luz vinha a caminho vagarosamente pelo céu fora, acendendo o azul e clareando as nuvens que espelhavam a lã alva, revertendo cinza para o contraste. Os montes eram silhuetas, dum outro mundo projectado neste, ganhando forma e contornos.


Quando o Sol nasce em Kervansaray é tão só uma miragem de espera resplandecente. Aos poucos, a minutos contados na sucessão do tempo, as ilhas nascem, como se fosse uma imitação da primeira criação, os seios distinguem-se no horizonte, soerguidos do meio duma toalha de água azul numa redonda gota lisa do tamanho do  horizonte.


Os montes derramam a luz pelas colinas no renascimento dos tojos, dos ciprestes,  dos pinheiros e das oliveiras.

A água apela. O corpo nela penetra e nela encontra o prazer da sua afirmação e do seu vigor, é um acto de amor, abraçado nos movimentos que nos trazem à superfície e nos faz deslocar dentro dela até percorrermos metros e metros da sua extensão infinita. E´ a delícia da natação, que deixa o corpo saudável, agradado pela combustão das toxinas e dos hidratos de carbono. O Sol seguidamente seca-nos, dá-nos o ar trigueiro a transpirar a saúde da satisfação.


A água tépida e o ar quente, uma temperatura variando para uma e outro entre os 25 e 30º centígrados, acolhem os adoradores do Sol, o corpo rejubila. De tal modo, é um paraíso climático que muitos artistas europeus vão acabar os dias da sua viagem terrena em Zorba, a 5 Kms de Bodrum.


Os melhores hotéis abarcam baías de sonho. Apesar da falta de areia, os empresários adornam as bermas do mar com convés de madeira. É neles que os apaixonados pelo Sol e pelo Mar se estiram, com uma vantagem em relação à areia, a de não se sujarem na conspurcação habitual das praias.


Há uma, contudo, uma estória sub-reptícia a contar. Uma estória mais ou menos brejeira, simbólica, melhor alegórica com alguma ironia: a estória do tripé.


O tripé que me acompanha para fixar memórias visuais, belezas naturais, rostos cheios, grandes, pequenos, repletos de infinito significado, animais espantosos  e árvores fantásticas. Rios e regatos esplendorosos. Momentos preciosos. Convívios inolvidáveis. Os que ficam e se fixam para sempre. Até o mundo acabar... connosco! Ele acaba sempre connosco, façamos o que façamos. Os vindouros nos conservam certamente. Se assim acharem por bem...


Pois o tripé memorizou episódios do arco da velha! Ora o esquecia, ora era impedido de entrar nos Museus. O tripé não gosta destes esquecimentos, frutos da idade, nem que o impeçam de afirmar a razão pela qual veio ao mundo. A Rute, a nossa guia, está solteira, morreu-lhe o namorado na guerra curda, na Anatólia Oriental, lá para a fronteira com o Irão ou do Iraque. Quando falamos de amor, ela chora. Por isso, eu deixo o tripé no autopullman a ver se vai com a Rute, se lhe faz companhia, se ela o adopta depois da viagem, mas a Rute não lhe liga nenhuma, e ele ofende-se. Ofendido, confessa-se a mim. Dou-lhe coragem e enalteço as suas virtudes, e ele fica mais satisfeito. O tripé não é coisa que se despreze, é um objecto de precisão, tenho necessidade de o enaltecer, senão não há mais fotografia para ninguém. Ele às tantas amua e faz greve, ou rejeita-me com alguma avaria por ele inventada na próxima madrugada solitária, e concretiza-a na realidade.


Durmo com o tripé, porém para lhe mostrar que não é rejeitado, ele acompanha–me sempre, e se o esqueço logo amua. Há muita gente que não tem tripé, como é o caso do Eurico... quem o diz é a Ermelinda gritando de desconsolo. Mas é só por graça que o diz porque o Eurico tem um tripé que parece uma trituradora. Dispara em tudo o que lhe aparece. É de facto assim, o tripé é tão valioso, é como o Midas que da pedra fazia ouro !


Mesmo nas cidades subterrâneas da Capadócia, o tripé mostrou-se à altura dos seus deveres. A escuridão deu realce às formas retratadas. Que prodígio! Não sei de que época é o mausoléu hitita, mas é uma minipirâmide... será que os faraós conheceram esta pirâmide e um deles resolveu pôr uma enormidade de escravos em Gizé a trabalhar no sarcófago onde viria a ser sepultado?


Não vás de óculos escuros, diz-me o tripé, podes cair nalgum poço destas catacumbas. Eu agradeço. Ele é meu amigo… Ia de facto caindo. Mudo de lentes.


Como passámos perto de Konya por uma aldeia que anunciava quantas raparigas na mesma buscavam noivo, recorrendo a garrafas grandes vazias postas no telhado da casa num lugar que pudesse ser visto dos carreiros e das estradas,  eu disse ao tripé que o ia instalar na praça central pública daquela localidade para chamar as solteiras anunciadas, e com elas namorar, ou declarar-se às que quisessem ser namoradas. Ele acedeu. Numa noite contei tantas que não haveria harém que as contivesse a todas. O tripé achou-se um engatatão, um grande Casanova, um machão, um Marialva de estirpe ribatejana.


Todavia, o tripé foi duma necessidade e utilidade preciosas: serviu-me de muleta e deu pancada nas ruínas de Éfeso à hidra de sete cabeças e a um deus grego, não sei se foi Zeus,  se Apolo (se foi este foi só por inveja), se Afrodite ( se foi  esta, foi só para experimentar se o ditado é fiável, aquele que diz quanto mais  me bates, mais gosto de ti), se Dionísio (se foi este, foi para ele acabar com as bebedeiras que causam cirroses de morte), ou teriam sido as cacetadas que espetou no Santo Onofre, o santo hermafrodita que de mulher boazona passou a homem viril com pêlo na venta e o resto sobejante ? Lindo tripé arranjei, que passou à categoria dum autêntico certificado operacional multi-usos !


Perto de Bodrum, considerando que foi duma inestimável ajuda, resolvi dar banho ao tripé. Ele consolou-se com as águas mornas e puras do Mar Egeu, todavia refrescantes para um corpo muito mais quente que era o dele por ser feito duma película negra. 


Houve ainda e finalmente a Nádia, que lhe deu uma olhadela, achou-o atraente, apesar da idade (o tripé já vai numa idade adulta - um quase nada avançada, vai-se chegando aos sessenta qualquer dia) e deu-lhe uma piscadela de olhos que ia resultando, não fora os compromissos inadiáveis e rigorosos que tinham de ser honrados na viagem que não terminara.


Ai, o filho da mãe, deveria ter mais vergonha, este tripé, não se devia ter metido com a Nádia, essa trintona bem feitinha aparecida a dar-lhe troco e a atirar-se com ardor! Teria ficado decepcionada porque contava com algum sonho das mil e uma noites. De castigo o tripé, sangrador daquele coração parisiense, repousa agora, hiberna, até nova viagem ainda não programada, mas tudo leva a crer que será um outro paraíso...

.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O Laxismo Diletante Contra O Rigor Literário

(ou a Arte suportada por dois ditos populares: "Quem te manda sapateiro, tocar Rabecão?" e "Tudo enfada, só a vaidade recreia") por Daniel Cristal

Muita vez me confronto com esta dúvida: se vale a pena pensar poesia, discorrer poesia, explicar poesia, contestar poesia. É uma situação em que, quem fala torna-se suspeito porque a pratica ; quem ouve - recebe com olhar vesgo e de soslaio, olha de lado, porque quer chegar à luz da ribalta, e ser reconhecido sem muito trabalho de permeio. Há aprendizes que pensam ter encarnado Rimbaud, esse génio meteórico, precoce, que apareceu (em Paris, onde vivia), e logo convenceu toda a elite artística, no final de sua adolescência... Um prodígio! E é curioso que foi tão aceite e acarinhado pelos jovens que o jubilaram, que logo desistiu, partiu, abalou para outros horizontes, e foi enriquecer no Oriente Médio, lá instituiu o seu harém, constituiu uma frota de camelos, e viveu como um nababo, um paxá, sem se importar mais com a poética.

A mim, parece-me que um dos cernes da questão está mesmo aqui: em que para se ser mestre, tem de se conhecer as regras, as normas, as técnicas, as teorias e o conhecimento, tudo isto junto e parcelado, e depois destas aquisições do aprendizado, preciso é exercitar muito para que se consiga ser apreciado, amado, e adquirir finalmente o mestrado.

Muitas vezes me vem à ideia ou me passa pela cabeça, ou se quiserem me põe a magicar esta imagem: não conhecendo as normas, técnicas teóricas e práticas da Arte musical, não tendo estudado música minimamente, o que vou eu fazer num teclado de um piano? Há quem consiga tocar flauta, gaita de beiços, viola ou violão, concertina ou harmónica, tão só de ouvido, numa pura imitação do conhecido e experimentado pela sensibilidade. Criar, isto é outra coisa. Não chegam lá os imitadores; podem ainda fazer uns trechos musicais que se assemelham ao conhecido, sujeito a alguma originalidade; mas ser Artista é toda uma outra coisa que não cabe em nenhum improviso! Vou ao piano, chego lá e ponho os dedos sobre as teclas. Toco e toco. Sai tudo errado, ninguém gosta, quero fazer crer aos outros que sou dotado, barafusto que tenho talento e sou génio, que sou prematuro, precoce, que sou superdotado... que sou revolucionário, sou rebelde, sou dissidente, sou uma força viva da natureza em estado virgem; grito que não preciso de normas e regras e estudo, que elas não servem para nada, e convenço-me, se não gostam do que ouvem, o defeito é de quem ouve, e não de quem tecla, porque meu receptor é atrasado mental, bota de elástico, velho convencido, invejoso, rabugento...

Mesmo conhecendo as regras, os que ascendem ao escalão de mestres, têm de ir mais longe; têm de optar por caminhos novos; por formas originais ou renovadas, senão a sua arte fica redundante, maçadora, estéril, puerilmente encantatória, irreconhecida pelos entendidos na matéria exercitada. A procura de novas formas, ritmos, sonoridades, imagens, a definição pela maturação dum estilo pessoal, pela definição rigorosa dum idiossincrasia peculiar, é a vida do mestre-criador. A obra-prima possui sempre uma expressão original e identificação peculiar. Precisa de ser incomparável. Basta um só traço para a distinguir e reconhecer de qualquer outro criativo. Uma luta árdua trava-se então para arredar o cliché ou a manifestação artística poluída ou gasta, até que de repente o criador se mostra seguro da sua mestria. E consequentemente um novo mundo artístico de desenha e desenvolve no seu imaginário, cada vez mais facilitado pela aprendizagem consciencializada a que não é alheia a retenção constante de novos contributos, extraídos de cíclicas renovações conceptuais de arquétipos metamorfoseados.

Picasso e Dali foram dois génios, dos melhores do seu tempo, porque eram perfeitos na pintura figurativa e impressionista; desenhavam classicamente como nenhum outro dos seus pares, qualquer objecto; retratavam-no na perfeição, e só quando se apropriaram integralmente de todas as regras, normas, técnicas, teorias, lançaram-se então (ainda muito jovens) na sua própria Arte particular, pessoalíssima, e foram aceites como paradigmas de uma época, caracterizando uma revolução de formas e conteúdos.

Em parte, agora evocando o segundo dito popular, transcrito em epígrafe, e já que foi editado pelo meu amigo Valdez (do Ateneu), Mário Quintana tem razão: "é melhor deixar poetar quem não sabe, do que deixá-lo frustrado a ruminar maus presságios e criar dores de inadaptação". Mas isto é um acto benemérito, solidário, de benquerença. Todavia, ele tem, como afinal tudo na vida, o reverso da medalha: também é um meio de criar ilusões a quem vai, no futuro, sofrer decepções, viver duramente frustrações, por não ser notado no trabalho que faz, nem amado! No entanto, há que dar chance aos que querem tentar e se vão esforçar por ir aprendendo. Com uma aprendizagem metódica e apurada, consentânea com o seu estatuto, vão-se aperfeiçoando para seu bem e prazer de nós todos, nós que precisamos da Arte para sobreviver num mundo enfadonho e triste, e decepcionante e ingrato, às vezes asqueroso e acanalhado. É ela que suaviza todas as amarguras da vida. Que não é fácil nem muitas vezes pródiga a existência, mas também é certo que nela podemos ser felizes, se soubermos enfrentar a adversidade e a agressividade munidos duma, mais ou menos forte, sapiência, colhida e acumulada ao longo dos anos de frustrações e sucessos.

Há outra ideia que me vem assaltando a mente frequentemente: quando começamos a ler uma poesia ou prosa, logo que lhe pegamos, notamos algo diferente (ou não); algo que nos agrada, nos seduz; basta ler os dois primeiros versos, as duas primeiras frases. Ficamos logo colados, atraídos por qualquer aroma de magia. Ora, é este primeiro contacto que define a poesia e a prosa excelentes. Não se julgue, porém, que escrever seduzindo é tão fácil como isso! É exactamente o contrário: demora horas e horas, semanas e semanas (às vezes meses); é um exercício de grande paciência, de suor vertido com algumas "lágrimas" de dor e de amor! É um constante refazer, retocar, nunca se considera perfeito. Lê-se, relê-se em voz alta, voz baixa, murmura-se, até que no fim podemos verificar e certificar que está tudo tão simples, fácil, entendível, cristalino, que parece ser a própria simplicidade natural, a mais cativante, e à qual facilmente todos aderem.

Técnicas, caros leitores, devemos aprendê-las todos os que querem ascender a mestres ou exercer uma actividade artística. Mas ela não chega, todavia, para se ser genial. O génio é também um dom; pertence a alguém dotado, que recorre a aprendizagens constantes e a exercícios longos e aturados (é um trabalho de forja, de lapidação, de espaço de estudo, compenetração e burilação). São exercícios de experiências e mais experiências, de cortes e recortes, colagens, e de abundante lixeira à qual lhe deita fogo de vez em quando. A Arte é uma escola de atributos e qualidades que recriam e recreiam, o Poeta ou o Artista pode, quando muito, querer dar a mão aos interessados na aprendizagem, por simpatia e generosidade. Coisa que até nem é obrigatória! Alguns mestres põem essa ideia liminarmente de lado, por ser uma postura que também contém defeitos muito negativos, insalubres, e com frequência efeitos muito perversos!

E pergunto-me ainda hoje: porque é que os/as "poetas" assim auto-intitulados, não escrevem prosa, e em vez de frases recortadas, paralíticas e trôpegas mal metrificadas, que não provaram a escanção, não editam textos em prosa? Leio textos que seriam belíssimos, se não quisessem aparentar o que não são. Às vezes até faço o inverso, como exercício lúdico: um texto poético transformo-o em texto dito prosa poética, e ambos ficam rigorosamente iguais no seu conteúdo, e tanto emocionam duma maneira como doutra. Será milagre da natureza? Quem estiver atento à transformação chegará à conclusão (estou convencido sem vaidade no que digo), que é um exercício jocoso e sub-reptício para ditar algumas lições, chamadas, vulgar e modestamente, dicas. René Char foi mestre no poema em prosa. Herdou-o do genial Charles Baudelaire. Vale a pena ler e estudar ambos. Os seus minitextos são de facto exíguos, mas significam, nomeiam e arrebatam o mundo todo, os fonemas e os signos respondem-se uns aos outros permanentemente, o ritmo é fabuloso…

Assim é entre outras composições, o soneto, as redondilhas, as trovas, cada texto lido ou cantado pode ser uma obra-prima.

O soneto, é a jóia da Literatura, a meu ver. Uma obra perfeitamente acabada, capaz de ser dita e cantada com ritmo perfeito, cadência impecável, com as sonoridades adequadas à expressão do sentimento e da emoção nas línguas românicas, preferencialmente nestas, mas também nas anglo-saxónicas… Se o trecho significante for, de igual modo, bem significativo, se a demonstração implicar e evidenciar um bom domínio, no respeito pelas suas intrínsecas regras estruturais de metrificação e rimação, e for complementado ainda pelas extrínsecas forças vocabulares, as que compulsam as ideias num recurso a uma variada gama de figuras de estilo do domínio da semiótica, então estamos pela certa em presença de algo valioso. Algo que sai da vulgaridade e pode causar e produzir o arrebatamento emotivo.

Inspiração não chega, diz o meu amigo escultor José Rodrigues, um dos nossos melhores escultores portugueses hodiernos. É só um por cento do trabalho, quiçá o mais importante, 
sendo certamente a marca do génio. Porém a Arte exige, outrossim, muita transpiração! É também e especialmente a parte restante (99%) que completa a obra de Arte - o suor e o trabalho não rogados. Ele não diz, como eu digo, o meu amigo escultor, mas quer dizer, sem margem de dúvida, a mesma coisa. A ordem das palavras (ele diz assim " uma obra de Arte nasce e desenvolve-se com 1% de inspiração e 99% de transpiração") e o contexto é que são diferentes. Ele fala no seu ateliê, eu falo em campo aberto. Ele fala para aprendizes que querem aprender. Eu falo para todos os que me lêem e desconheço o interesse que eles dão a estas matérias literárias...

Quantos têm pensado nisto? Os do ofício, ainda que amador, certamente, estão comigo!

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Fernando Pessoa - Daniel Cristal


O Poeta finge a Poesia numa obra,
e finge tanto que imagina ser
o próprio fingimento, pois desdobra
o puro sentimento em parecer !

E, o que parece, é, como a mulher
que, casada com César, não se freia,
e na orgia báquica não finge o que é:
Pompeia condenada por Boa Deia.

De facto ao Poeta nada é proibido:
a permissão da emoção no som
da imaginação, fá-lo querido...

Poeta condenado ao bom tom,
endeusado na obra com sentido,
é digno do ofício com seu dom !